Um vídeo em que o cardiologista norte-americano Peter McCullough faz uma série de alegações a respeito das vacinas contra a covid-19, principalmente sobre a possibilidade de casos de miocardite derivados da aplicação dos imunizantes, somou mais de 9,6 mil interações nas redes sociais desde 26 de janeiro de 2022. Mas essas alegações são falsas ou enganosas, segundo documentos e especialistas consultados pela AFP.
“Dr Petter McCullough falando no Senado Americano esta semana! Imperdível”, diz a legenda de uma publicação no Instagram, com um vídeo de pouco mais de dois minutos de duração com a fala do cardiologista.
A sequência também circula no Facebook (1, 2) e no Twitter (1, 2).
Uma busca reversa por capturas de tela da gravação obtidas por meio da ferramenta InVID-WeVerify* mostrou como resultado uma matéria do site Clark County Today de 25 de janeiro de 2022 intitulada: “Veja o painel do senador [Ron] Johnson sobre a covid-19 com os médicos Robert Malone, Peter McCullough”, em tradução do inglês.
O texto inclui o vídeo do evento, chamado “COVID-19: Uma segunda opinião”, realizado em 24 de janeiro de 2022 e transmitido ao vivo pela plataforma Rumble.
O trecho viralizado de algumas declarações dadas pelo médico Peter McCullough nas redes sociais pode ser visto a partir do minuto 5:05:17.
Veja a seguir a verificação da AFP sobre as principais alegações feitas no vídeo viralizado.
A FDA e os CDC “concordam” que as vacinas causam miocardite: Enganoso
Em sua página sobre casos de miocardite e pericardite após a vacinação contra a covid-19, os Centros de Controle e Prevenção de Doenças dos Estados Unidos (CDC) ressaltam que as doenças foram raramente relatadas após a vacinação, e que a maioria dos pacientes que recebeu tratamento respondeu bem e teve rápida melhora.A organização destaca ainda que continua recomendando a vacinação de todos os maiores de cinco anos: “Os riscos conhecidos da covid-19 e as complicações relacionadas, possivelmente severas, como problemas de saúde de longo prazo, hospitalizações e até mortes, superam de longe os potenciais riscos de ter uma reação adversa rara à vacinação, incluindo um possível risco de miocardite ou pericardite”.
Já a agência de Medicamentos e Alimentos dos Estados Unidos (FDA) explicou ao Checamos em 3 de fevereiro de 2022 que monitora a segurança das vacinas contra a covid-19: “Análises conduzidas pela FDA incluem a revisão de relatórios individuais, uma análise agregada de dados do Vaers [Sistema de Notificação de Eventos Adversos de Vacinas], e o desenvolvimento de estudos de caso quando indicado por possíveis preocupações sobre segurança”.
“Durante essas revisões, a FDA descobriu que muitas das notificações não representam reações adversas em decorrência da vacina”.
A agência detalhou que “isso pode acontecer devido a um diagnóstico incorreto, a registros médicos que revelam que os sintomas começaram antes da vacinação, ou porque o paciente tem comorbidades que explicam a reação adversa”.
Em um comunicado de 31 de janeiro de 2022 sobre a aprovação de forma permanente da vacina contra a covid-19 da Moderna, a agência destacou, por meio de uma declaração do diretor do Centro para Avaliação e Pesquisa de Biológicos da FDA, Peter Marks: “Vacinas seguras e eficazes são nossa melhor defesa contra a pandemia da covid-19, incluindo as variantes circulando no momento. O público pode estar seguro de que essa vacina foi aprovada diante de parâmetros científicos rigorosos da FDA”.
O imunizante, o segundo confirmado nos EUA depois do da Pfizer, já havia recebido uma autorização de uso emergencial em 18 de dezembro de 2020.
Um estudo publicado pelo periódico The Journal of the American Medical Association (Jama) em outubro de 2021 avaliou a incidência de miocardite em pessoas vacinadas com imunizantes de RNA mensageiro (mRNA) nos Estados Unidos e concluiu que o efeito adverso foi considerado “raro”, com “5,8 casos a cada 1 milhão de indivíduos depois da 2ª dose”.
A análise destacou, ainda, que os 15 pacientes com miocardite que participaram do estudo tiveram resolução dos sintomas com um “tratamento conservador”, sem necessidade de admissão em unidade de tratamento intensivo ou de readmissão após terem tido alta.
A FDA informou à Pfizer que os imunizantes causam miocardite: Enganoso
Em 26 de outubro de 2021, a FDA publicou um documento informativo, com dados de segurança e eficácia, sobre o pedido de autorização da Pfizer-BioNTech para administrar sua vacina contra a covid-19 especificamente em crianças de 5 a 11 anos nos Estados Unidos. A agência aprovou essa ampliação do uso do imunizante em 29 de outubro.
Nesse arquivo há um modelo de previsões para estimar quantas infecções, hospitalizações, internações em UTI e mortes por covid-19 seriam evitadas a cada um milhão de crianças de 5 a 11 anos totalmente vacinadas contra o coronavírus nos Estados Unidos e prever quantos casos de miocardite, hospitalizações, internações em UTI e óbitos atribuídos à condição cardíaca poderiam ocorrer após a imunização, considerando a mesma quantidade de crianças imunizadas. A conclusão da agência foi que: “O modelo da FDA prevê que, no geral, os benefícios da vacina superam seus riscos em crianças de 5 a 11 anos de idade”.
O risco de miocardite foi avaliado uma vez que casos muito raros dessa inflamação do músculo cardíaco têm sido reportados após a segunda dose de vacinas de RNA mensageiro, como é o caso do imunizante da Pfizer. A Organização Mundial de Saúde (OMS) informa, em texto atualizado em 24 de janeiro de 2022, que continua monitorando a segurança dos imunizantes. “A miocardite e a pericardite podem ser causadas por diversos fatores, incluindo infecções, vírus, medicamentos e fatores ambientais. Os dados disponíveis atualmente sugerem que também há uma potencial relação entre esses sintomas e vacinas de mRNA. Pesquisas estão sendo feitas para melhor entender essa relação”.
No mesmo texto, a OMS destacou que “os benefícios dessas vacinas superam de longe os riscos de miocardite e pericardite, por prevenir mortes e hospitalizações por covid-19”.
Além disso, os possíveis efeitos adversos, como os casos de miocardite, constam na bula do imunizante da Pfizer: “Casos muito raros de miocardite (inflamação do músculo cardíaco) (...) foram relatados após vacinação com Comirnaty. (...) Geralmente são casos leves e os indivíduos tendem a se recuperar dentro de um curto período de tempo após o tratamento padrão e repouso”.
Ao Checamos, a Pfizer Brasil ratificou essa informação em janeiro de 2022: “Até o momento, especificamente sobre a vacina ComiRNAty, casos muito raros de miocardite e pericardite foram relatados. Os órgãos de vigilância locais e internacionais competentes endossam que o benefício da vacinação segue se sobrepondo a qualquer risco”.
Entre 18 e 50 anos os riscos das vacinas são maiores do que os da covid-19: Falso
“Qualquer pessoa, em qualquer idade, pode contrair a covid-19 e apresentar um quadro grave ou morrer”, afirma a OMS em seu site, apesar de especificar que pessoas maiores de 60 anos correm um risco maior de desenvolver casos graves em decorrência do SARS-CoV-2.
Estudos e análises feitos comparando os riscos de miocardite após a vacinação e depois de contrair a covid-19 mostram que as chances de desenvolver essa doença cardíaca após a infecção são consideravelmente superiores, embora apontem para o fato de que as probabilidades de efeitos pós-vacina são maiores em indivíduos menores de 40 anos.
O cardiologista da Imperial College de Londres Ricardo Petraco afirmou ao Checamos em janeiro de 2022: “Quando a gente compara os riscos da covid-19 e os riscos das vacinas, de qualquer [uma] delas, o risco de ter um problema cardíaco é muito maior com a doença em si do que com a vacina”.
Outros cardiologistas entrevistados pela equipe de checagem da AFP também assinalam essa relação.
“O risco de miocardite devido à infecção por covid-19 é muito maior do que devido à vacina. Portanto, a relação benefício-risco da vacinação anticovid em um país onde o vírus continua circulando se mantém positiva”, afirmou Dariouch Dolatabadi, cardiologista do Hospital Universitário de Charleroi, na Bélgica, em 27 de outubro de 2021.
Estudos que evidenciam riscos elevados de miocardite foram apresentados à FDA e não foram questionados: Sem Registro
McCullough cita alguns estudos (1, 2, 3, 4) que supostamente teriam sido apresentados à FDA, “sem terem sido questionados”.
O Checamos fez uma busca no sistema da FDA onde estão registrados documentos apresentados durante as reuniões da agência e não encontrou registros de apresentação formal dessas investigações.
Os CDC registraram 21 mil casos de miocardite nos EUA relacionados às vacinas: Enganoso
Uma consulta ao Sistema de Notificação de Eventos Adversos de Vacinas (Vaers), coadministrado pelos Centro de Controle e Prevenção de Doenças dos Estados Unidos (CDC) e pela FDA, mostrou que o número de casos de miocardite relatados até 28 de janeiro de 2022 (última data de atualização até a publicação deste texto) diverge dos 21 mil citados por McCullough no vídeo viralizado.
Ao selecionar a opção “miocardite” e as vacinas contra a covid-19 administradas no país (Pfizer, Moderna e Janssen), o Checamos obteve como resultado 2.486 notificações. O site do Vaers atualiza periodicamente os dados e expõe um balanço das notificações de forma acumulativa.
A plataforma destaca, contudo, que as informações de efeitos adversos ali contidas são de casos não verificados. “Uma notificação ao Vaers não significa que a vacina causou uma reação adversa”, informa a página do sistema, que ressalta que os casos podem ser relatados por qualquer pessoa.
Em nota enviada à AFP em 21 de janeiro de 2022, os CDC se pronunciaram no mesmo sentido: “O Vaers foi planejado para detectar rapidamente padrões não usuais e não esperados de reações adversas. O Vaers não foi planejado para determinar se uma reação adversa foi causada pela vacina”.
Não é possível constatar, portanto, se os dados de miocardite registrados no sistema têm ou não relação causal com as vacinas anticovid.
Esta verificação foi realizada com base em informações científicas e oficiais sobre o novo coronavírus disponíveis na data desta publicação.
*Uma vez instalada a extensão InVID-WeVerify no navegador Chrome, clica-se com o botão direito sobre a imagem e o menu que aparece oferece a possibilidade de pesquisa da mesma em vários buscadores.