Jornal Estado de Minas

CHECAMOS

Estudo não testou eficácia da ivermectina contra a COVID-19 em humanos


 

Publicações compartilhadas mais de 15 mil vezes nas redes sociais garantem que um estudo realizado pela empresa farmacêutica japonesa Kowa demonstrou a eficácia do antiparasitário ivermectina contra a variante ômicron do SARS-CoV-2 em um estudo de fase III. Os conteúdos, que circulam desde 31 de janeiro de 2022, citam a agência de notícias Reuters como fonte, mas a agência corrigiu o título da sua matéria a fim de esclarecer que a pesquisa mostrou o efeito antiviral apenas in vitro, e não em humanos. Especialistas e instituições explicaram à AFP que, embora ensaios clínicos para testar a eficácia da ivermectina estejam sendo realizados, sua ação para prevenir ou curar a covid-19 não foi comprovada até agora.




“A empresa farmacêutica japonesa Kowa disse na segunda-feira que o medicamento antiparasitário Ivermectina foi considerado eficaz para tratar a variante Omicron da COVID-19 em um ensaio da Fase III”, diz o texto de uma das publicações compartilhadas no Twitter (1, 2, 3), no Facebook (1, 2, 3) e em sites (1, 2).

O conteúdo também circulou em espanhol e francês.

A mensagem começou a ser compartilhada após a publicação de uma matéria da agência de notícias Reuters, publicada em 31 de janeiro de 2022 com o título: “Japan's Kowa says ivermectin effective against Omicron in phase III trial” (“Kowa do Japão diz que a ivermectina é eficaz contra a ômicron no ensaio de fase III”, em português).

A AFP encontrou uma versão da notícia em inglês arquivada no mesmo dia na plataforma Wayback Machine.



“A empresa farmacêutica e comercial japonesa Kowa disse na segunda-feira que o medicamento antiparasitário ivermectina mostrou ser eficaz no tratamento da variante ômicron da covid-19 em um estudo de fase III. O teste descobriu que a ivermectina tem ‘um efeito antiviral’ contra a variante, disse Kowa sem dar detalhes”, acrescentou a matéria.

“O objetivo de um ensaio clínico sobre um produto sanitário (medicamento, dispositivo ou terapia celular e genética) é avaliar a segurança e a eficácia deste último em voluntários saudáveis ou doentes”, explica em seu site o Instituto Nacional de Pesquisa em Saúde e Medicina da França (Inserm, na sigla em francês).

O ensaio é composto por três fases: a primeira avalia a possível nocividade do produto; a segunda o testa em um número limitado de pacientes; e a terceira avalia o interesse terapêutico com uma amostragem maior.

“Os voluntários geralmente são divididos em dois grupos para comparar a eficácia do medicamento candidato com um tratamento de referência (se houver) ou com um placebo (substância neutra). Ao final desses ensaios, e dependendo de seus resultados, as autoridades sanitárias emitem (ou não) uma autorização de comercialização (AMM) para o medicamento testado”, continua o Inserm.



A Kowa emitiu um comunicado em 31 de janeiro de 2022, esclarecendo que o "efeito antiviral" da ivermectina contra a variante ômicron foi observado, mas não em humanos e nem durante um ensaio clínico de fase 3 que estaria concluído.

A Reuters corrigiu sua matéria no mesmo dia, indicando que se tratava de um protocolo de pesquisa “não clínico” e com a observação de que “o artigo original da Reuters afirmou incorretamente que a ivermectina era 'eficaz' contra o ômicron em ensaios clínicos de fase III, que são realizados em humanos”.
Captura de tela do site da Reuters feita em 2 de fevereiro de 2022 ( . / ) (foto: reprodução)

A agência também esclareceu no Twitter: “CORREÇÃO: Kowa, do Japão, disse que o medicamento antiparasitário ivermectina mostrou um 'efeito antiviral' contra ômicron e outras variantes do coronavírus em um ensaio não clínico conjunto. O site da OMS publicou advertências contra seu uso. Vamos remover um tweet com um título enganoso".





CORRECTION: Japan's Kowa said anti-parasite drug ivermectin showed an 'antiviral effect' against Omicron and other variants of coronavirus in joint non-clinical research. The @WHO has warned against its use https://t.co/kBgUxaYjaL We will delete a tweet with a misleading headline pic.twitter.com/gX535ttNd3
— Reuters (@Reuters) January 31, 2022

Ivermectina em humanos

A ivermectina é um medicamento de uso veterinário e humano, utilizado contra parasitas como sarna, oncocercose ou piolhos. Esse tratamento é amplamente utilizado em áreas do mundo afetadas por infestações parasitárias.

Desde o início da crise sanitária, foram realizados estudos para verificar se esse medicamento, conhecido por sua capacidade de limitar a replicação de certos vírus, como o da febre amarela, também poderia ajudar no combate à covid-19.

Embora um estudo tenha permitido observar uma eficácia in vitro (em laboratório) da ivermectina no SARS-CoV-2, sua eficácia em humanos ainda não foi comprovada porque não há evidências científicas suficientemente sólidas, como foi verificado pelo AFP Checamos.



“Os estudos de uso de ivermectina em covid-19 são muito deficientes, ou com poucos pacientes, e muitos trabalhos são acusados de plágio e fraude”, disse ao Checamos em outubro de 2021 Flavio da Silva Emery, ex-presidente da Associação Brasileira de Ciências Farmacêuticas e professor da Faculdade de Ciências Farmacêuticas de Ribeirão Preto da USP.

“É preciso ter cuidado com os estudos in vitro, que não são realizados nem em animais, mas em culturas de células, porque embora um efeito possa parecer extremamente promissor, como foi o caso da hidroxicloroquina, as concentrações que são eficazes in vitro muitas vezes não podem ser alcançadas em humanos sem toxicidade comprovada”, explicou em agosto de 2021 à AFP Bernard Bégaud, diretor da unidade de farmacoepidemiologia do Inserm.

Isso também foi o que a Reuters apontou na versão corrigida de sua matéria: “Muitos potenciais tratamentos de covid-19 que se mostraram promissores em tubos de ensaio, incluindo o medicamento antimalárico hidroxicloroquina promovido pelo ex-presidente dos Estados Unidos Donald Trump, em última instância não mostrou nenhum benefício para pacientes com covid-19 uma vez estudados em ensaios clínicos”.



“A grande maioria são pré-publicações não validadas por seus pares ou, quando publicadas, estudos com vieses metodológicos que dificultam a interpretação dos resultados e não permitem tirar conclusões”, afirma a Sociedade Francesa de Farmacologia e Terapia (SFPT).

“Para declarar a eficácia de um medicamento, seja ivermectina ou qualquer outro, a exigência tem que ser alta. Isso significa que deve haver ensaios clínicos que demonstrem resultados clinicamente relevantes. No caso da covid-19, os que mais nos interessam são a mortalidade e a internação em terapia intensiva”, apontou à AFP Karin Kopitowski, chefe do Serviço de Medicina de Família do Hospital Italiano de Buenos Aires .

“Deveria ser usado agora em uma grande amostra de pacientes quando houver uma infecção sendo protocolizada: ou seja, fazer um ensaio clínico para ver se um grupo tratado com ivermectina teria seus sintomas aliviados em comparação com um grupo tratado normalmente, como cuidamos os pacientes hoje”, afirmou Bégaud.



Profissional de saúde coleta uma amostra para teste de covid-19, para um estudo clínico em 20 de maio de 2021 na Espanha ( AFP / Pau Barrena) (foto: reprodução)

Controle de pragas e covid-19

Na França, a Agência Nacional de Segurança de Medicamentos (ANSM) rejeitou um pedido de Recomendação Temporária de Uso (RTU) desse medicamento para o tratamento do coronavírus em abril de 2021, alegando que não poderia “assumir um benefício/risco favorável da ivermectina no tratamento curativo ou preventivo da covid-19”.

Essa decisão convergiu com um parecer emitido pelo Conselho Superior de Saúde Pública, que também não recomendou sua utilização no contexto da crise sanitária fora dos ensaios clínicos.

No mesmo sentido, a Divisão de Avaliação Sanitária do Ministério de Saúde Pública do Uruguai "recomenda fortemente o não uso de ivermectina para a prevenção e/ou tratamento da doença covid-19", já que "não há evidências científicas suficientes" que sustentem a indicação.



A Sociedade Argentina de Infectologia se expressa de forma semelhante e acrescenta: “As evidências in vitro disponíveis sugerem que, para atingir níveis efetivos de ivermectina, seriam necessários aumentos significativos e potencialmente tóxicos na dose. Mesmo doses até 10 vezes maiores que as aprovadas não atingiriam concentrações efetivas in vitro contra o SARS-CoV-2”.

Em 31 de março de 2021, a Organização Mundial da Saúde (OMS) também aconselhou“não usar ivermectina” para pacientes com covid-19, com exceção de ensaios clínicos. A recomendação se aplica "independentemente do nível de gravidade ou duração dos sintomas", disse Janet Díaz, chefe da equipe clínica responsável pela resposta à covid-19 na Organização das Nações Unidas.

Os especialistas da OMS tiraram suas conclusões de um total de 16 ensaios clínicos randomizados envolvendo 2.400 pessoas. Mas alguns desses ensaios comparam a ivermectina com outras drogas, e o número de estudos comparando-a com placebo "é muito menor", segundo Bram Rochwerg, pesquisador da Universidade McMaster no Canadá e membro do painel de avaliação da OMS .



Alguns dias antes, em 22 de março de 2021, a Agência Europeia de Medicamentos (EMA) já havia desaconselhado o uso de ivermectina na prevenção ou tratamento do coronavírus. A EMA “concluiu que os dados disponíveis não suportam seu uso para COVID-19 fora dos ensaios clínicos”, segundo um comunicado.

Nos Estados Unidos, a Food and Drug Administration (FDA), em página dedicada a alertar os internautas contra o uso de antiparasitário para covid-19, afirma que “tomar grandes doses desse medicamento é perigoso e pode causar sérios danos”.

No Brasil, uma nota técnica emitida pelo Ministério da Saúde em maio de 2021 afirmava que os resultados dos estudos “não parecem ser suficientes para suportar recomendação de uso da ivermectina no tratamento de pacientes com covid-19”.



No entanto, em janeiro de 2022, o ministério rejeitou as diretrizes técnicas que contraindicavam o uso do “kit-covid”, com cloroquina, azitromicina, ivermectina e outros medicamentos sem eficácia comprovada para tratar a doença, apontando a “incerteza e incipiência do cenário científico diante de uma doença em grande parte desconhecida”.


A AFP já verificou outras alegações sobre a eficácia da ivermectina no tratamento da infecção por coronavírus (1, 2, 3).