Às vésperas do 31 de março de 2022, publicações nas redes sociais questionam a existência de um golpe militar no Brasil. Segundo usuários, não houve uma ditadura entre 1964 e 1985, mas um “regime militar”, já que teria havido “alternância de poder” e participação do Congresso Nacional na deposição do presidente João Goulart, na eleição de Castelo Branco e na aprovação da Constituição de 1967.
“Na verdade depois de 64 os militares assumiram porque os que estavam no poder, fugiram e o povo clamou pelas FFAA assumirem. Não tivemos ditadura, tivemos um governo militar. Teve alternância de poder, com regras específicas”, diz um tuíte de 27 de março de 2022.
Um ano antes outro usuário assinalava: “!Eu não sei porque as pessoas insistem na expressão ‘golpe de 64’ se quem cassou o João Goulart e elegeu o Castelo Branco presidente foi o próprio Congresso. Além disso, a Constituição de 1967, do Regime Militar, foi aprovada pelo Congresso, e não imposta, como a do Império ou na ditadura Vargas”.
Afirmações similares vêm circulando regularmente nas redes sociais pelo menos desde 2013 (2016, 2017, 2019, 2021).
De acordo com o Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC), o ex-presidente João Goulart foi deposto na madrugada de 31 de março de 1964 diante do avanço das tropas mobilizadas pelos generais Mourão Filho e Amauri Kruel sob o pretexto de livrar o Brasil do comunismo.
Na noite de 1° de abril, o Senado declarou a vacância do cargo de presidente da República, interinamente ocupado pelo então líder da Câmara dos Deputados, Ranieri Mazzilli. No dia 2 de abril, formou-se o “Comando Supremo da Revolução", chefiado por representantes das Forças Armadas. O general Humberto Castelo Branco assumiu o poder em 15 de abril, sendo o primeiro dos cinco militares que governaram o Brasil por 21 anos.
Embora publicações nas redes sugiram que o golpe de 1964 foi uma “farsa”, o acontecimento se enquadra na definição de golpe de Estado dada por especialistas no assunto, como descrito pelo Dicionário de Política, editado pela Universidade de Brasília: “um método para conquistar o poder” e “na maioria dos casos, levado a cabo por um grupo militar ou pelas forças armadas como um todo”.
As definições de regime militar e de ditadura tampouco refletem as diferenças citadas pelas publicações viralizadas.
“Com a palavra Ditadura, tende-se a designar toda classe dos regimes não democráticos especificamente modernos”, diz o dicionário.
Sobre regimes militares, o dicionário aponta especificamente o caso da América Latina, onde a ação dos militares na política era essencialmente de caráter pontual até as décadas de 1960 e 1970, quando essas intervenções perderam seu caráter temporário e “procuraram transformar-se em regimes”, que, mesmo apoiados por determinados setores sociais, “fizeram elevado uso da repressão”.
Carlos Fico, professor de História do Brasil da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), explica que, apesar das diferenças conceituais, na prática, os termos costumam ser usados como sinônimos:
“A expressão regime militar é um pouco mais branda do que ditadura, mas é usada, em geral, até por pesquisadores, mais como uma sinonímia. No fundo, expressam a mesma coisa: a ditadura brasileira foi um regime militar autoritário”, afirma Fico. “Há consenso na historiografia de que se tratou de uma ditadura”, sublinhou.
Algumas publicações viralizadas afirmam que o regime militar não foi uma ditadura por ter sido “aclamado pela sociedade”.
Em março de 1964, foram organizadas as Marchas da Família com Deus pela Liberdade, que reuniram milhares de pessoas contra as reformas de base propostas por Goulart. A Marcha da Vitória, realizada no Rio de Janeiro em 2 de abril, levou 1 milhão de apoiadores às ruas.
Fico alerta, contudo, que essas manifestações contra o governo não significam que o golpe tenha tido um forte apoio popular. “Naquele momento, em 1964, obviamente as pessoas não sabiam que haveria uma ditadura de 21 anos”, disse. Ele adicionou:
“Houve apoio de parte da sociedade, da imprensa, da Igreja Católica, de associações profissionais à derrubada de Goulart, sim. A gente até muito recentemente tinha essa impressão de apoio expressivo. Mas isso passou a ser muito contestado a partir do momento em que, há alguns anos, houve a revelação de pesquisas do Ibope feitas na época e que não foram divulgadas até então, às vésperas de 1964, que mostram enorme apoio popular a Goulart”.
De acordo com essas pesquisas do Ibope, realizadas entre os dias 20 e 30 de março de 1964, nas cidades de São Paulo, Araraquara e Avaí, no estado de São Paulo, o governo de João Goulart era avaliado como “ótimo” ou “bom” ou “regular” por, respectivamente, 72%, 62% e 74% dos entrevistados.
Para Lívia Gonçalves Magalhães, professora de História do Brasil República do Departamento de História da Universidade Federal Fluminense (UFF), embora alguns setores tenham sido favoráveis ao golpe, esse “elemento do apoio não é suficiente para dizer que não houve ditadura".
“Esse apoio não era a um projeto, porque esse projeto [de um governo militar que ficaria no poder por 21 anos] nunca foi colocado em votação”, explicou.
“Fachada de legalidade”
Os especialistas consultados também refutaram a alegação viralizada de que não houve ditadura porque no período “teve alternância de poder”.
“Os generais eram escolhidos pelo próprio Exército para serem presidentes, sendo apenas chancelados pelo Congresso, que era controlado pela ditadura por conta das cassações”, disse o professor da UFRJ.
Exceto por curtos períodos temporais, em 1966, 1968 e 1977, o Congresso permaneceu aberto. Assim como a simulada alternância de poder, isso contribuía para que se estabelecesse uma aparente legalidade, apontam os especialistas.
“Os atos institucionais todos e as Constituições que a ditadura outorgou davam essa aparência de juridicidade”, argumentou Fico. Mas, na prática, prevalecia o Poder Executivo, ao qual o Legislativo se submetia.
Exemplo disso foi a determinação do Ato Institucional N°1 (AI-1), de 9 de abril de 1964, de que os projetos de lei enviados pelo presidente da República que não fossem apreciados em no máximo 30 dias pela Câmara e dentro desse prazo pelo Senado seriam considerados aprovados.
O AI-1 também suspendeu as imunidades parlamentares e autorizou o Executivo a cassar mandatos e suspender os direitos políticos por 10 anos. Em 10 de abril de 1964, 40 parlamentares tiveram seus mandatos cassados no Congresso.
“Qual deputado, depois de um golpe de Estado, depois de dezenas de cassações, iria votar contra o Castelo Branco? Não se pode dizer que foi uma eleição livre”, expôs Fico.
O Congresso também sofreu com a extinção dos partidos políticos pelo AI-2. Pela legislação partidária, apenas dois partidos eram permitidos: a Aliança Renovadora Nacional (Arena), dos partidários do governo, e o Movimento Democrático Brasileiro (MDB), com a oposição, conferindo, nas palavras de Fico, uma “fachada de legalidade”.
Para os historiadores, por esses motivos, a alegação de que o regime não foi uma ditadura porque o Congresso aprovou a Constituição de 1967 não se sustenta.
“O Congresso que aprovou a Constituição de 1967 era marcado por cassações, sem liberdade partidária. Era o Congresso permitido pela ditadura, que também fechava esse Congresso quando queria”, disse Magalhães.
O AI-4, de 27 de outubro de 1965, convocou o Congresso para se reunir “extraordinariamente”, entre os dias 12 de dezembro de 1966 - pouco após ter passado cerca de um mês fechado por decreto presidencial - e 24 de janeiro de 1967, para discutir, votar e promulgar o projeto de Constituição de Castelo Branco.
O prazo de 43 dias destoa do período de 16 meses que durou a Assembleia Constituinte de 1987-1988, que derivou na Carta Magna atualmente em vigor.
Segundo a Comissão da Verdade, que investigou os crimes da ditadura, 434 pessoas morreram ou desapareceram nos 21 anos em que os militares ocuparam o poder.