A descoberta no sábado, 2 de abril de 2022, de corpos em Bucha, uma pequena cidade a noroeste de Kiev, provocou indignação internacional. A Ucrânia acusou o exército russo, que recentemente se retirou da região, de estar por trás de um massacre de civis, o que Moscou nega.
Nas redes sociais, usuários compartilharam dezenas de vezes um vídeo que mostra vários corpos em uma rua, em postagens que sugerem se tratar de uma encenação das forças ucranianas. Mas os jornalistas da AFP presentes no local testemunharam os mortos nas ruas da cidade, e as imagens compartilhadas não mostram um suposto cadáver se mexendo. Além disso, fotografias de satélite de março passado já mostravam a presença de cadáveres na área.
“O Ministério da Defesa russo acusou a mídia ucraniana e ocidental de espalhar fake news como parte de uma campanha global de difamação, depois que um vídeo supostamente mostrando cadáveres deixados pelas tropas russas na cidade de Bucha, perto de Kiev, se tornou viral”, diz uma das publicações compartilhadas no Twitter (1, 2) e no Facebook.
“Em uma versão mais lenta do vídeo pode-se ver claramente como um ‘cadáver’ do lado direito da estrada move a mão e depois se senta, logo após o carro passar (visto no retrovisor)”, acrescenta.
Conteúdos semelhantes circulam em espanhol, francês, inglês, alemão e búlgaro.
Em sua conta do Telegram, seguida por quase 200.000 pessoas, o Ministério da Defesa russo compartilhou um vídeo de 20 segundos da mesma cena em 3 de abril de 2022 com a seguinte análise: "Falso: os militares russos abandonaram Bucha, deixando muitos civis mortos. A realidade: as imagens de Bucha apareceram em várias publicações estrangeiras ao mesmo tempo - parece uma campanha de mídia planejada (...). O vídeo dos cadáveres é desconcertante: aqui, aos 12 segundos, o 'cadáver' da direita move o braço”.
"Os corpos no vídeo parecem ter sido colocados deliberadamente para criar uma imagem mais dramática (...). Depois que as tropas russas se retiraram de Bucha, as AFU [Forças Armadas da Ucrânia] bombardearam a cidade. Isso também pode ter causado baixas civis”, acrescenta a publicação russa.
No mesmo dia, a embaixada russa no Canadá postou um tuíte com o mesmo vídeo, garantindo que mostrava "cadáveres falsos". "A versão mais lenta mostra claramente que um 'cadáver' move a mão e depois se levanta após o carro que passa (visto no espelho retrovisor)", afirma.
A origem do vídeo
Aparentemente filmadas a partir de um veículo de um comboio militar ucraniano, as imagens mostram vários corpos no chão, ao longo de uma rodovia que passa por casas e buracos de bombardeios, que a AFP geolocalizou como sendo a rua Yablonska, em Bucha.
O fragmento faz parte de uma sequência mais longa publicada em 2 de abril no canal do Youtube da televisão ucraniana Espreso.TV. Nele, a jornalista apresenta as imagens como prova das "atrocidades cometidas pelos ocupantes russos em Bucha".
Uma versão mais longa, com som e imagem de melhor qualidade, foi postada no mesmo dia na conta do Twitter do Ministério da Defesa ucraniano, que afirma que a gravação mostra "a execução arbitrária de civis".
Os mortos se mexem?
Nas publicações virais, o vídeo foi desacelerado e está em baixa qualidade. Entretanto, ao observar a sequência com melhor definição, é possível constatar que os cadáveres não se movem.
O primeiro homem à direita do vídeo não levanta a mão. Na verdade, se trata de uma gota de chuva no para-brisa do veículo de onde a cena é filmada:
Getting fed up of this “it’s a moving arm” bullsh….. it’s a raindrop on the windscreen, alongside an inverted channel version for more clarity. The whole arm moving thing is just ridiculous. pic.twitter.com/ZiuEX4rFWc
— Aurora Intel (@AuroraIntel) April 3, 2022
A AFP, no local dos fatos
Em 2 de abril, uma equipe da AFP chegou a Bucha e testemunhou a presença dos corpos de cerca de 20 pessoas vestidas com roupas de civil. Um deles, com as mãos amarradas.
“Desde que chegamos pudemos ver que a rua estava cheia de cadáveres”, disse o jornalista Danny Kemp. “Primeiro vimos um grupo de três [mortos] e depois percebemos que havia mais em ambas as direções. Estavam divididos ao longo da rua, em intervalos irregulares a uma distância de cerca de 400 metros, alguns sozinhos e outros em pequenos grupos de dois ou três. Percorremos todo o local pelo menos duas vezes. Contamos os cadáveres, constatando que eram 20, fotografamos e filmamos. Em nenhum momento vimos algum deles se mover", detalhou Kemp por e-mail.
"Durante esse tempo, observamos que os corpos estavam todos vestindo roupas civis. Sua pele era cerosa e amarelada e seus dedos rígidos, alguns tinham unhas descoloridas. Alguns tinham seus membros em posições desajeitadas. Alguns estavam com os olhos abertos, outros com a boca aberta . Ficou claro que eles estavam mortos há vários dias, se não mais", acrescentou o jornalista da AFP.
Ao comparar as imagens viralizadas com as que foram feitas pela AFP no local dos fatos, há uma série de elementos visuais que revelam que se trata da mesma cena: o corpo da vítima, em vermelho nas imagens abaixo, e elementos coincidentes, em verde, como a beirada da calçada, a casa ao fundo e o muro.
Na fotografia seguinte, enviada por Danny Kemp e feita por ele no dia 2 de abril, quando os corpos foram encontrados, é possível ver o mesmo corpo do vídeo viralizado:
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Duas outras fotos da AFP, feitas um dia depois, mostram funcionários municipais de Bucha se preparando para colocar o mesmo corpo em um saco de cadáveres.
Na comparação a seguir são vistos outros elementos coincidentes, marcados em verde: a beira da calçada, um cartaz ao fundo e um muro.
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O homem que usuários afirmam que “se senta”, aparece duas vezes no vídeo compartilhado nas redes: primeiro no chão e dois segundos depois no espelho retrovisor do veículo.
Esse corpo, contudo, também foi fotografado pela AFP em 3 de abril, 24 horas depois, na mesma posição e no mesmo local. Ao comparar essa foto com as capturas do vídeo viral, observam-se também elementos coincidentes, marcados em verde: a calçada e a roupa rasgada no braço direito.
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“Testemunhas em Bucha nos disseram que viram uma fila de cerca de 70 veículos blindados russos deixar a cidade na noite de terça-feira, 29 de março, mas que os bombardeios russos continuaram intensamente na quarta-feira, 30 de março. O último bombardeio que ouviram foi na quinta-feira, 31 de março", disse Kemp.
E acrescentou: "Os jornalistas da AFP que estavam nos arredores de Irpin, perto de Bucha, ouviram o bombardeio na quinta-feira. Foi impossível acessar a área até sexta-feira, pois as autoridades ucranianas disseram que não era seguro entrar. A AFP entrou em Irpin na sexta-feira, 1º de abril, e em Bucha no sábado, 2 de abril".
Imagens de satélite e fotografias
Imagens de satélite publicadas em 4 de abril de 2022 também parecem refutar as alegações russas de que os corpos com roupas de civis encontrados em Bucha apareceram após a retirada das forças russas da cidade devastada.
Essas imagens foram feitas em meados de março e parecem mostrar vários corpos de civis mortos na rua ou ao lado dela. "As imagens de satélite de alta resolução da Maxar coletadas em Bucha, Ucrânia (noroeste de Kiev) confirmam e corroboram vídeos e fotos recentes nas mídias sociais mostrando corpos deitados nas ruas e deixados ao ar livre por semanas", disse o porta-voz da empresa norte-americana Maxar Technologies, Stephen Wood, em comunicado.
O New York Times publicou uma análise de imagens em primeiro plano da rua Yablonska, em Bucha. Após comparar com as imagens do vídeo de 1º e 2 de abril dos corpos espalhados pela rua, concluiu que muitos estavam ali há pelo menos três semanas, quando as forças russas controlavam a cidade.
A BBC também comprovou por meio de fotografias de satélite que as acusações de que o massacre foi encenado são infundadas.
A AFP comparou imagens de satélite de 19 de março de 2022 com suas fotos do local feitas em 2 de abril. Os corpos aparecem nas mesmas posições e nos mesmos lugares.
O número 5 na comparação abaixo mostra o corpo da primeira vítima mencionada nas postagens virais.
O que se sabe das mortes em Bucha?
Bucha foi ocupada pelo exército em 27 de fevereiro de 2022, permanecendo inacessível por mais de um mês. Os bombardeios cessaram na quinta-feira, 31 de março, e as forças ucranianas somente conseguiram entrar na cidade há alguns dias. A Ucrânia acusou os russos de serem responsáveis pelas mortes.
Moscou, que nega qualquer ação de sua parte, anunciou que investigará essa “provocação atroz” que, segundo diz, tem como objetivo “desacreditar” as forças russas na Ucrânia.
Segundo o prefeito de Bucha, Anatoli Fedorouk, essas pessoas foram assassinadas por soldados russos com "um tiro na nuca". Os corpos de 57 pessoas também foram encontrados em uma fossa comum, disse Serhii Kaplychnyi, funcionário municipal, à AFP em 3 de abril.
Uma dúzia de corpos eram visíveis, alguns apenas parcialmente enterrados, atrás de uma igreja no centro da cidade. Vários estavam em sacos pretos e aqueles que podiam ser vistos estavam vestindo roupas de civis.
Em 2 de abril, Fedorouk disse que "280 pessoas" foram enterradas"em fossas comuns" porque não podiam ser sepultadas nos cemitérios de Bucha.
O prefeito de Kiev, Vitali Klitschko, que visitou Bucha no domingo, 3 de abril, disse à AFP: "Acreditamos que mais de 300 civis foram mortos".
Indignação internacional
Os governos de vários países ocidentais, assim como a ONU, expressaram sua indignação após a descoberta dos corpos. Michelle Bachelet, alta comissária da ONU para os Direitos Humanos, disse estar "horrorizada" com as imagens de Bucha. Para Bachelet, "foram levantadas perguntas graves e preocupantes sobre possíveis crimes de guerra e graves violações do direito internacional humanitário, bem como graves violações dos direitos humanos".
Os Estados Unidos e o Reino Unido propuseram a suspensão da Rússia do Conselho de Direitos Humanos da ONU, enquanto a União Europeia discute sanções às importações russas de carvão e petróleo.