Relatórios divulgados por um site argentino se baseiam em premissas falsas para sugerir supostas anomalias nas urnas eletrônicas usadas nas eleições de 2022.
No conteúdo, compartilhado mais de 100 mil vezes desde 4 de novembro, defende-se que apenas o modelo de 2020 seria confiável por ter sido o único testado.
Mas todos os modelos de urna usados passaram por testes, e foram utilizados nas eleições de 2018, segundo o TSE.
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Não é verdade que Bolsonaro não obteve nenhum voto no município de São Gabriel da CachoeiraUma foto de dinheiro apreendido em 2020 circula vinculado às eleições de 2022Gilmar estava acompanhado por juristas na Itália, e não por filho de Lula'Resumo do 'relatório argentino': foi uma ANÁLISE DEMOLIDORAMENTE CIENTÍFICA, mas, baseada em auditoria privada, lembrou o analista. Todos os dados, entretanto, são da base do TSE, ponto. O que a pesquisa mostrou, cientificamente falando, foi o seguinte:', diz um usuário no Twitter, que continua: 'urnas modernas respeitaram a vontade do eleitor. Urnas antigas, manifestaram vontade própria'.
Os dados a que se refere constam em um relatório divulgado nas redes sociais e também em uma live do canal argentino La Derecha Diario, que foi retirada do ar por decisão do Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Alegações similares, que ainda estão disponíveis em contas da página nas redes sociais, circulam no Facebook, no TikTok, no Kwai e no Instagram.
A gravação da live também foi encaminhada ao WhatsApp do AFP Checamos, para onde os usuários podem enviar conteúdos vistos em redes sociais, caso duvidem de sua veracidade.
Os dois relatórios, um sobre o primeiro e outro sobre o segundo turno das eleições de 2022, circulam nas redes sociais e em sites ao menos desde 4 de novembro, quando foi anunciada uma transmissão ao vivo do canal La Derecha Diario para divulgar os supostos achados. A conta é conhecida por apoiar o mandatário Jair Bolsonaro (PL) e criticar o presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva (PT).
O documento que tem mais alegações é o referente ao primeiro turno, realizado em 2 de outubro, quando Lula obteve 48,43% dos votos válidos e Bolsonaro, 43,20%. A disputa presidencial seguiu e, em 30 de outubro, o petista venceu, com 50,90% dos votos válidos, contra 49,10% de seu oponente.
O relatório indica 'indícios cruciais que tornam improvável a completa lisura do processo eleitoral de 2022', mas, para isso, se pauta em premissas falsas.
Testes em diferentes modelos de urna
O primeiro e principal ponto abordado no relatório é a suposta diferença entre o modelo de urna de 2020 e modelos de anos anteriores, como 2015, 2013, 2011, 2010 e 2009. Isso se daria, segundo o documento, por um processo de auditoria pelo qual o modelo mais recente teria passado, ao contrário dos outros.
Para Lucas Lago, engenheiro da computação e desenvolvedor do Projeto 7c0, o que o relatório chama de auditoria é a rotina de testes realizada antes das eleições. Tanto o modelo de urna de 2020 quanto de anos anteriores passaram por esses testes de segurança.
Os modelos de urna de 2009, 2013 e 2015 (1, 2, 3) passaram pelo Teste Público de Segurança (TPS), evento fixo no calendário eleitoral, quando 'qualquer brasileiro pode apresentar um plano de ataque aos sistemas eleitorais envolvidos na geração de mídias, votação, apuração, transmissão e recebimento de arquivos', afirma o TSE.
Ainda segundo o Tribunal, as urnas eletrônicas do modelo de 2020 que não estavam prontas no período de realização do TPS 2021 foram testadas pelo Laboratório de Arquitetura e Redes de Computadores (Larc) da Escola Politécnica da USP, além de ter o conjunto de softwares avaliado também pela Unicamp e pela UFPE. 'Nas três avaliações, não foi encontrada nenhuma fragilidade ou mesmo indício de vulnerabilidade', acrescenta o órgão.
Há ainda os testes de integridade e de autenticidade, realizados durante a eleição, ressalta o professor Avelino Zorzo, coordenador do grupo de confiabilidade e segurança de sistemas da PUCRS. Ele explica:
'As seções que passam por teste de integridade e autenticidade são sorteadas na véspera das eleições e qualquer modelo de urna é sorteado e depois conferido para ver se elas estão funcionando conforme a legislação vigente. Nem nesta, nem em outras eleições, qualquer erro foi encontrado no funcionamento das urnas'.
No primeiro turno, por exemplo, o teste de integridade teve uma amostragem com 641 urnas, na qual 'todos os votos dados na urna conferiram com os votos em papel', disse o presidente do TSE, ministro Alexandre de Moraes, em nota do órgão.
Em comunicado enviado à AFP em 6 de novembro de 2022, o TSE afirma que os equipamentos antigos já estão em uso desde 2010 (para as urnas modelo 2009 e 2010) e que todos foram utilizados nas Eleições 2018.
Software e arquivos de log
O segundo apontamento feito no relatório viralizado diz respeito ao software usado nas urnas — o programa responsável pelo sistema eletrônico de votação — e aos arquivos de log, que têm o registro de todas as atividades que aconteceram nas urnas.
A página 66 do relatório sobre o primeiro turno, que concentra a maior parte das teorias sobre a suposta fraude, mostra dois logs diferentes de um mesmo modelo de urna, e com isso, conclui que haveria dois softwares (chamados também de códigos-fonte) distintos. Mas essa é outra premissa falha, apontaram os especialistas consultados pela AFP.
'É completamente normal que um mesmo software tenha logs diferentes', diz Lago, detalhando que os logs usados no relatório foram realizados em momentos de interação de usuários com as máquinas, e que comportamentos diferentes podem gerar logs diferentes.
Zorzo concorda, explicando como se dá a preparação das urnas, uma das interações que pode gerar logs diferentes: um operador carrega as urnas com informações das seções eleitorais, depois são feitos testes para verificar se a carga está correta.
Se estiver tudo certo, a urna é lacrada e preparada para o dia de votação. Mas se durante essa verificação algum problema for identificado, o software tem que ser carregado em outra urna. 'Esse processo fica registrado na nova urna e a que apresentou problema é retirada', conclui.
É falso, portanto, que as imagens apresentadas no documento comprovem a existência de duas versões de softwares, destacam os pesquisadores.
Outros problemas
Zorzo aponta que os dados apresentados no relatório não seguem 'qualquer padrão científico' e são escolhidos 'de forma a tentar mostrar uma linha de pensamento que se deseja'.
Apesar disso, há falhas nas explicações dadas para além dos pontos-chave. Em sua conta no Twitter, o cientista de dados Marcelo Oliveira destacou a comparação divulgada no documento entre como seria a votação apenas se utilizado o modelo de urna de 2020 e se fossem utilizados modelos de anos anteriores. 'Mesmo se fosse 'roubado', Lula ainda tem maior % nas duas, ia ganhar do mesmo jeito', comentou Oliveira.
Outro problema apontado é o fato de Bolsonaro não ter tido nenhum voto em algumas seções onde urnas de modelos anteriores a 2015 foram utilizadas. As páginas 49 a 64 do relatório sobre o primeiro turno são dedicadas a exemplificar seções com urnas 'afetadas' por 'resultados improváveis' pelo fato de o presidente não ter sido votado como supostamente deveria.
Uma das seções citadas é a 158 do município de Confresa, no Mato Grosso. Ali, de fato, Bolsonaro não teve nenhum voto. O relatório não mostra, contudo, que essa seção fica em uma comunidade indígena e que todos os eleitores e eleitoras da seção são indígenas. 'É comum neste tipo de localidade, bem como em áreas quilombolas, que haja convergência nos votos', afirma uma nota do TSE.
Assim, mesmo que fique próxima a outras seções que tiveram votação favorável ao presidente, a tendência não necessariamente se confirma.
O AFP Checamos já verificou diversas narrativas que questionam o funcionamento das urnas eletrônicas (1, 2, 3).