O presidente da República não tem poderes constitucionais para impedir a saída de políticos do país com um decreto. Apesar disso, publicações compartilhadas mais de 10 mil vezes nas redes sociais desde pelo menos 14 de dezembro de 2022 garantem que Jair Bolsonaro (PL) assinou um decreto proibindo a emissão de passaportes diplomáticos e também a saída de políticos do Brasil. Não existem, contudo, registros de um decreto semelhante e um especialista explicou à AFP que o mandatário só teria poderes para limitar a entrada e saída de brasileiros do país em caso de decretação de estado de sítio.
'Decreto de hoje proibido passaporte diplomático Estar chegando o dia 18/12/2022', lê-se no texto sobreposto ao vídeo, que circula no Facebook, no YouTube, no TikTok, no Kwai e no Helo.
A gravação também foi encaminhada ao WhatsApp do AFP Checamos, para onde os usuários podem enviar conteúdos vistos em redes sociais, caso duvidem de sua veracidade.
No vídeo, uma voz feminina diz: 'O decreto de hoje do presidente da República: ele transferiu 300 pessoas para os cargos (...). Está proibida a emissão de passaportes diplomáticos e proibida a saída de políticos e cidadanias de qualquer pessoa política do país. (...) Se vocês não entenderam, vai lá na DOU, que é o Diário Oficial da União, e lê o decreto (...), 300 pessoas transferidas para desembargador, Itamaraty e embaixadas. Nenhum político pode deixar o país, nenhum político, nenhum visto vai poder ser dado, nenhuma cidadania pode ser dada'.
Apesar de diversas outras mensagens, assim como o vídeo viral, garantirem que o decreto teria sido assinado em 18 de dezembro, mensagens semelhantes já circulavam em 14 de dezembro, afirmando: 'Acho que estão reforçando o controle das embaixadas, possibilidades de emissão de vistos de cidadania, questões de passaporte diplomático. Ou seja, daqui ninguém sai'.
Entretanto, nenhum dos decretos publicados em 14 de dezembro (1, 2) no Diário Oficial da União (DOU) traz qualquer menção à emissão de passaportes diplomáticos.
Um deles tratava sobre remanejamento de cargos dentro de órgãos ligados à Presidência da República e outro remanejava cargos da Marinha e do Ministério da Defesa. Os outros dois tratavam da criação da Rede Brasileira de Pesquisa Clínica e da concessão da Medalha Nacional do Mérito Científico a uma série de instituições.
Outros três decretos assinados por Bolsonaro e publicados nessa data eram relativos a nomeações e tampouco tinham relação com o citado nas publicações virais (1, 2, 3).
Uma pesquisa no Google pelos termos 'Bolsonaro 300 cargos' trouxe como resultado reportagens (1, 2) de 14 de dezembro a respeito dos decretos assinados pelo mandatário que remanejaram cargos na estrutura da Presidência da República e impactam mais de 300 funções. Não há qualquer menção à proibição de emissão de passaportes diplomáticos.
O site da Câmara dos Deputados também mostra que, no dia 16 de dezembro — dois dias após a assinatura dos decretos —, pelo menos três passaportes diplomáticos foram emitidos para deputados ou seus dependentes. É o caso dos parlamentares Celina Leão (PP-DF) e Giovani Cherini (PL-RS).
No dia 18 de dezembro (domingo), o DOU não trouxe publicações oficiais. No dia 19, foram publicados outros dois decretos assinados por Bolsonaro, mas que tampouco citava a emissão de passaportes diplomáticos (1, 2).
Nenhum dos outros decretos assinados por Bolsonaro em 2022 contém o termo 'passaporte diplomático' em sua ementa.
O AFP Checamos procurou o Ministério das Relações Exteriores, mas não obteve resposta até a publicação desta verificação.
Nenhum político pode deixar o país?
Além de não existir menção a restrições na entrada e saída de pessoas com cargos políticos nos decretos citados, o presidente da República tampouco tem autoridade para estabelecer uma medida semelhante por meio de um decreto, como dito nas postagens viralizadas.
'À princípio, nem por decreto nem por lei', afirmou à AFP Roberto Dias, advogado e professor de Direito da FGV-SP, citando que o artigo 5º da Constituição Federal garante a 'livre locomoção no território nacional em tempo de paz, podendo qualquer pessoa, nos termos da lei, nele entrar, permanecer, ou dele sair com seus bens'.
'A restrição à saída do país (não só de políticos) só [seria possível] se houvesse a decretação do estado de sítio. Mas não estamos diante da hipótese de decretação', acrescentou.