Em 2018, a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), junto com Organização Mundial da Saúde (OMS), publicou o documento 'Orientações técnicas internacionais de educação em sexualidade'. Em maio de 2023, publicações visualizadas mais de 3 mil vezes nas redes sociais alegam, de forma deturpada, que esse guia estimularia as crianças a terem parceiros sexuais. Mas o texto não contém nenhuma informação com esse teor e as versões distorcidas fazem parte de teorias da conspiração que circulam há anos relacionadas à Organização das Nações Unidas (ONU).
''As crianças devem ter parceiros sexuais' dizem a ONU e a OMS', diz O texto que acompanha a foto de uma criança pequena em publicações no Facebook, no Telegram, no Twitter, no Kwai e em sites.
O conteúdo foi encaminhado ao WhatsApp do AFP Checamos, para onde leitores podem enviar alegações vistas em redes sociais se duvidarem de sua veracidade, e também circula em espanhol.
Em algumas publicações também é dito que a ONU instruiu 'professores a se certificarem de que as crianças tenham parceiros sexuais e comecem a fazer sexo o mais cedo possível'.
Site conhecido por compartilhar desinformação
As publicações citam uma página chamada 'Stop World Control', que compartilha diversas teorias da conspiração já verificadas pela AFP em português e espanhol, como a ideia de que a Agenda 2030 da ONU teria por objetivo 'impulsionar o aborto e fomentar a eutanásia' e que a pandemia de covid-19 foi uma 'farsa' e não houve registros de mortes.
A página também compartilha declarações de conhecidos desinformadores, como o promotor do dióxido de cloro Andreas Kalcker, e o advogado alemão Reiner Fuellmich (1, 2), que arrecadou grande quantia de dinheiro supostamente para processar cientistas e a OMS durante a pandemia de covid-19, o que nunca aconteceu.
Uma pesquisa pelo código-fonte do site revela que ele está ativo desde março de 2022. Fora esses dados, a página não fornece informações sobre quem o criou ou é responsável por seu conteúdo.
A imagem da menina que circula nas redes sociais ilustra um artigo intitulado ''As escolas devem preparar as crianças para terem parceiros sexuais', dizem a ONU e a OMS'.
No texto, disponível em vários idiomas, lê-se que a OMS e a ONU estão 'sexualizando' as crianças em idade escolar em todo o mundo e que as diretrizes oficiais das instituições assinalam que 'crianças pequenas são seres sexuais que devem ter parceiros sexuais, e começar com o sexo o mais cedo possível'.
Em outro trecho do texto se lê que as organizações teriam estabelecido que 'os jardins de infância e as escolas primárias devem ensinar as crianças a desenvolver a luxúria e o desejo sexual'.
Relatório distorcido
A publicação no site inclui capturas de tela de um relatório em inglês da Unesco intitulado 'International technical guidance on sexuality education'.
O informe foi publicado em vários idiomas em janeiro de 2018 em colaboração com a OMS e outras divisões da ONU. A versão em português tem como título 'Orientações técnicas internacionais de educação em sexualidade: uma abordagem baseada em evidências'.
Uma revisão do documento mostra que não há qualquer menção de que as crianças devam ter parceiros sexuais, começar a praticar relações sexuais, ou 'desenvolver a luxúria e o desejo sexual', como citado no texto publicado no site Stop World Control.
O relatório da Unesco é dirigido a profissionais da Educação e da Saúde para ajudá-los a desenvolver e implementar programas e materiais educativos para que crianças e jovens tenham uma preparação segura, informada e responsável em relação à sua sexualidade.
A publicação do Stop World Control cita as páginas 16 e 17 do relatório da Unesco, afirmando que estas assinalam que 'seu objetivo é equipar as crianças...para desenvolver relações sexuais' e que esse guia pretende que 'essas habilidades' ajudem 'as crianças a formar relacionamentos com... parceiros sexuais'.
No entanto, a página 16 do relatório original explica que a educação sexual abrangente é um processo que busca ensinar aspectos cognitivos, emocionais, físicos e sociais da sexualidade.
A educação integral em sexualidade 'tem por objetivo transmitir conhecimentos, habilidades, atitudes e valores a crianças, adolescentes e jovens de forma a fornecer-lhes autonomia para: garantir a própria saúde, bem-estar e dignidade; desenvolver relacionamentos sociais e sexuais de respeito; considerar como suas escolhas afetam o bem-estar próprio e o de outras pessoas; entender e garantir a proteção de seus direitos ao longo de toda a vida'.
Já na página 17, o guia da Unesco aponta que a educação sexual integral ajuda a 'desenvolver as habilidades para a vida necessárias para apoiar escolhas saudáveis'.
'Tais habilidades podem ajudar crianças e jovens a formarem relacionamentos respeitosos e saudáveis com familiares, colegas, amigos e parceiros amorosos ou sexuais', diz o documento original.
As publicações virais também citam a página 71 do texto da Unesco, alegando que ele instrui os professores a ensinar crianças de cinco e nove anos a beijar, abraçar, tocar e praticar comportamentos e estímulos sexuais.
O texto original, na realidade, refere-se ao comportamento e à resposta sexual, e aos objetivos de aprendizagem apropriados à cada idade.
Em relação à idade de cinco aos oito anos, indica-se que as crianças devem saber que 'as pessoas podem demonstrar seu amor por outras por meio do toque e da intimidade', mas também 'entender quando é ou não apropriado tocar'.
Dos nove aos 12 anos é mencionado que os estudantes devem saber que 'as pessoas têm um ciclo de resposta sexual, onde a estimulação sexual (física ou mental) pode produzir uma resposta física'.
O documento não ensina as crianças a terem relações sexuais ou as encoraja a ter relações com pessoas do mesmo sexo.
Desinformação recorrente
A ONU e a OMS não promovem, nem em seus princípios nem em seus programas, condutas ou comportamentos que ameacem a segurança ou a integridade sexual de menores de idade.
Essa não é a primeira vez que compartilham desinformação relacionada a essas organizações internacionais.
A AFP já verificou várias alegações falsas envolvendo o nome das instituições, como o impulsionamento de aborto e eutanásia, incitação à pedofilia, ou a implementação de chips na humanidade.