Posse (GO) — A enfermeira Rúbia Rodrigues da Silva coordena o posto do Programa Saúde da Família (PSF) na cidade goiana, na divisa com a Bahia. Está acostumada a atender moradores de Posse com a doença de Chagas e a tentar encaminhamentos para centros médicos especializados, em Brasília e em Goiânia. “Aqui, é difícil achar uma família que não tenha Chagas.” Os pais e um irmão de Rúbia têm a doença. A família da enfermeira, a exemplo dos pacientes da unidade do PSF, não teve privilégios: ninguém consegue o medicamento indicado para casos agudos e crônicos. “O que nos dizem é que não está fabricando mais. Fico preocupada com meus pais e meu irmão.”
A indústria farmacêutica desistiu de mais uma doença da pobreza, e isso já faz nove anos. Desde 2003, a Roche Farmacêutica não fabrica o rochagan, nome ainda usado por quem tem Chagas para denominar o benznidazol. A licença foi transferida para um laboratório público, o Lafepe, que só produziu os primeiros lotes do medicamento cinco anos depois. Suspensa a fabricação no ano passado, o problema ganhou contornos internacionais. O Lafepe é o único no Brasil e no mundo a produzir o benznidazol. Praticamente todos os pacientes do mal de Chagas, a maioria deles na América Latina, dependem do medicamento produzido em Pernambuco.
“A situação chegou a um ponto crítico”, admite o diretor-presidente do Lafepe, Luciano Vasquez Mendez. “Se a matéria-prima não chegasse, haveria colapso no abastecimento.” O Correio apurou que houve, sim, desabastecimento. Municípios do interior do país, como Posse, deixaram de receber o benznidazol ao longo do ano passado. São exatamente locais com grande quantidade de doentes crônicos e com possibilidade de novos casos da fase aguda da doença. O acompanhamento, o custeio da produção e a regulação dos estoques de benznidazol são responsabilidades do Ministério da Saúde. Apesar de o presidente do Lafepe ter admitido ao Correio que a produção do benznidazol foi paralisada por sete meses, o Ministério da Saúde diz que “não é verdade” que o medicamento deixou de ser produzido. “Não há desabastecimento e, até este momento, não há registro de falta localizada do referido medicamento”, sustenta, por meio da assessoria de imprensa.
Sofrimento coletivo
A doença de Chagas é uma realidade em 40 das 120 casas que formam o povoado de Nova Vista, em Posse (GO). Os moradores doentes têm acesso a um posto de saúde instalado no distrito, mas a unidade só consegue oferecer atendimento e medicação para hipertensão arterial. O diagnóstico de Chagas, para boa parte deles, ocorreu em razão da pesquisa do instituto norte-americano Texas Biomedical.
A agente de saúde do povoado, Ana de Sousa Almeida, de 52 anos, consegue custear um tratamento especializado. Uma raridade no local. Ana sabe que tem Chagas há 10 anos. Desenvolveu megaesôfago e uma cardiopatia. Para se tratar, vai a Goiânia uma vez por semana, um percurso de mais de 500km. “Não tenho plano de saúde. Então junto um dinheirinho e faço as consultas por órgão. Numa semana o coração, na outra o esôfago.” Quase todos os moradores perderam pais ou irmãos em decorrência das complicações da doença. “Sei que vou morrer do mesmo jeito”, diz Ana.
Na região do Bacopario, também zona rural de Posse, famílias inteiras foram acometidas pelo mal. Jesumar Rosa da Conceição nasceu no Bacopario, tem 32 anos, vai ser pai pela segunda vez e há cinco anos está na fila do INSS para obter aposentadoria por invalidez. A doença de Chagas o obrigou a parar de trabalhar. “Só planto um milho para comer.” A mãe de Jesumar morreu com Chagas, aos 48 anos. O avô também.