Lá se vão três décadas desde que a escritora feminista e historiadora Elizabeth Badinter colocou contra a parede a certeza de que toda mulher deseja ser mãe. Em L’amor en plus, que no Brasil ganhou o título de Um amor conquistado: o mito do amor materno (Ed. Nova Fronteira), a pesquisadora mostrou dados históricos que balançaram a relação mãe e filho. A maternidade seria uma construção social e não um desejo natural. O livro é considerado um desaforo por conservadores que acreditam ser o instinto materno algo inquestionável. Mesmo assim, a discussão não cessou. Pelo contrário, a voz da autora francesa se juntou a de outras mulheres que reavaliaram a maternidade como uma dádiva. A partir da década de 1990, mais brasileiros têm repensando o combo casamento + filhos. Não só por uma questão financeira, uma vez que os gastos com apenas um filho pode corresponder a 40% do orçamento familiar, segundo o educador financeiro Reinaldo Domingos, mas simplesmente porque a vinda do primogênito não está nos planos. As razões são diversas e apontam para um caminho ainda visto com certo preconceito.
A metáfora do servidor público Hugo Garcia, 28 anos, ilustra uma situação pela qual nem ele nem a mulher, a servidora Patrícia Luque, 37, gostariam de passar. “Ter filhos é como pular em uma piscina gelada. Quando se mergulha nela, tenta-se convencer os outros de fora a entrar dizendo: “Como está gostoso aqui”, brinca Hugo. Mas o casal não entrou nessa “fria”. Casados há cinco anos, não precisaram quebrar a cabeça quanto a ter ou não uma criança em casa. “No começo, falamos sobre isso. Foi um ponto em comum. Eu nunca quis, nunca me vi grávida, e ele também não queria ser pai.”
A ideia de que a liberdade do casal ficaria por um fio por causa de um bebê é o que mais dá certeza aos dois de que felicidade é permanecer a sós. “Observamos que o assunto do casal que tem filhos é só o filho. Todas as questões da casa são por conta dele. É ele quem dita para onde você vai. Você não pode viajar para qualquer lugar e em qualquer época do ano por causa da dinâmica do filho. É essa responsabilidade que não anima a gente”, justifica Hugo.
Acordar a hora que quiser, não se preocupar se a geladeira está cheia ou não — eis alguns dos motivos triviais que desestimulam Hugo e Patrícia a dar esse passo. Mas quando perguntam ao casal se a opção por não ter filhos passa pela questão financeira, eles afirmam em uníssono: “Não”. “Esse nunca foi um argumento nosso. Até porque crescemos sem muito luxo, da forma que deu. Hoje temos condição financeira de ter filho, ainda que agora esteja um pouco mais apertado porque abrimos uma nova empresa. Por isso, essa nunca foi uma justificativa preponderante”, conta Hugo.
O educador financeiro Reinaldo Domingos também descarta a “desculpa” da condição financeira quando escuta jovens casais dizerem não ter filhos porque falta dinheiro. “Assim, como ter filhos é uma opção, também é uma opção se preparar e ter reservas financeiras mensais, e isso se faz por meio da educação financeira. Por isso, não se pode tomar a decisão de ter filhos sem antes saber que é demandado, no mínimo, 30% do ganho líquido mensal para proporcionar uma vida saudável e financeiramente sustentável. Acredite, se fizer uma boa faxina financeira em tudo que se consome em casa, certamente encontrará de 20% a 30% de excesso em tudo. Se houver disciplina e perseverança, é possível ter filhos”, constata Domingos.
Salário versus filho: 2 X 0
No Brasil, o grupo dos sem-filhos ganhou uma abreviação, dinc, que quer dizer “duplo ingresso, sem crianças”. Trata-se de uma adaptação da expressão em inglês dink, “double income, no kids”. Segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostras de Domicílio (PNAD), em 1996, a família dinc representava apenas 2,7% do total de domicílios, passando para 3,7% em 2006. Um crescimento de quase 90% em uma década. O número de brasileiros que optaram por não ter filhos saltou, portanto, de um milhão para 1,9 milhão no período.
Essa fatia da população pode ser ainda maior, indica a Síntese de Indicadores Sociais 2010 (dados de 2009). Dos 62,3 milhões de arranjos familiares no Brasil, 15,2% são de casais sem filhos e sem parentes. Em Santa Catarina, esse percentual chega a 19,9% (maior), enquanto no Amapá é de apenas 9,7% (menor). Em Brasília, a porcentagem chega a 12,6%. Os dados, porém, não são conclusivos, uma vez que não discernem entre arranjos familiares de casais sem filhos e casais cujos filhos já saíram de casa. Um retrato mais apurado da realidade só quando o próximo Censo for divulgado.
Pesquisadores do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) acreditam estar diante de um fenômeno social. Além da família que predominou historicamente — pai, mãe e filhos —, outras formações como a dinc merecem atenção. Segundo a pesquisa A família dinc no Brasil — algumas características sociodemográficas, publicada pela Escola Nacional de Ciências Estatísticas em 2010, os casais sem filhos colocam em xeque os pilares da instituição familiar pois não há continuidade geracional.
Esse seria, segundo a pesquisa, reflexo de uma sociedade pós-industrial e pós-moderna. Quer dizer, fatores como a inserção da mulher no mercado de trabalho, a criação de métodos anticonceptivos e o reconhecimento de diferentes tipos de união geram mudanças na família e, por isso, pedem reflexões.
A sós e em grupo
São vários os grupos de discussão em redes sociais cujo objetivo é legitimar a escolha dos casais dinc. A rede passou a abrigá-los e um dos casos mais populares é o clube No kidding, fundado pelo professor canadense Jerry Steinberg, casado e sem filhos. Ele também derruba a teoria de que “pessoas que não querem ter filhos odeiam crianças”. Pelo contrário, Jerry adora os pequenos, mas não em tempo integral. Em 1984, esse canadense teve a ideia de montar um clube para casais na mesma situação. Tudo começou quando ele passou a sentir falta dos amigos, que se distanciaram após a chegada dos primogênitos. Atualmente, o clube tem mais de 40 filiais espalhadas em quatro países. São aceitos como membros aqueles que não querem ter filhos, os que não podem tê-los e os que estão indecisos. Depois de quase 30 anos, Jerry não está mais à frente da agremiação. Ele se aposentou, mas se orgulha da continuidade do projeto. Ainda hoje, quando o professor canadense escuta que não ter filhos é escolha de gente egoísta, rebate: “É. Mas as pessoas têm filhos por razões bastante egoístas: por prazer, para cuidar delas na velhice, para ter alguém para amar e amá-las de volta, para viver coisas que não puderam viver quando eram crianças, para exercer poder sobre alguém, para dar continuidade ao nome da família. O que é mais egoísta que fazer um mini-eu?” (Confira: www.nokidding.net)
Juntos na velhice
Décadas antes desse cenário se ampliar pelo país, a arquiteta Maria do Carmo Araujorge, 62 anos, e o administrador Márcio Borsoi, 59, casados há 30 anos, já tinham decidido que maternidade e paternidade não estavam nos planos. A decisão foi natural. Primeiro, o namoro, que durou nove anos. Em seguida, o casamento. Depois, a mudança do Rio de Janeiro para Brasília. O tempo foi passando e o casal não demonstrava o desejo de ter filhos. “Não conhecemos tantos amigos que tenham feito a mesma escolha. Também não temos arrependimentos”, conta Márcio. Maria do Carmo lembra que a família dele fez cobranças sutis. Perguntavam quando viria o primeiro filho. “Se quiséssemos mesmo ter filhos, teríamos. Não havia um impedimento real, mas a gente não tem que viver nos moldes. Eu e ele nos completamos”, defende.
Com uma agenda cheia de encontros com amigos, o casal descarta a ideia de que ter filhos é garantia de companhia na velhice. Eles percebem por experiência própria. No caso de Márcio, seus pais já faleceram, mas a mãe de Maria do Carmo mora em Niterói e recebe a visita da filha única somente em algumas datas especiais. Por causa da distância entre ela e a mãe, a arquiteta se deu conta de que ter filho não significa assistência 24 horas. “Viajamos de férias juntos e, quando ela está doente, vou para Niterói. Só que, contabilizando, passo apenas algumas semanas do ano com minha mãe. Isso também poderia acontecer comigo. Não dá para saber se o filho vai morar perto de você ou na Nova Zelândia, por exemplo. Criam-se filhos para o mundo. Não dá para prendê-los”, constata Maria do Carmo.
Márcia Leite e Alexandre Lobo concordam. “Nos dizem isso quando estranham nossa decisão e afirmam que vamos envelhecer sozinhos, mas estamos tranquilos”, conta Márcia. No entanto, Fábio Anjos teme por essa etapa da vida sem uma prole ao redor. “Tenho um certo medo quanto ao futuro. Dizem que são os filhos que cuidam dos pais no fim da vida e isso não vamos ter. Portanto, cuidamos muito da nossa saúde e mantemos uma ótima relação com sobrinhos e irmãos”, reconhece Fábio. Já a mulher de Fábio, Eline, não vê problemas. “Tem asilo e casa de repouso para isso. Alguns dos idosos têm filhos. E onde eles estão?”, questiona.
Guardar economias para que a velhice não seja uma etapa difícil já é um projeto de Patrícia Luque e Hugo Garcia. Nada de se preocupar se fulano ou sicrano da família vão cuidar deles. “Não queremos ser um fardo para ninguém”, diz Hugo. Cientes de que escolheram uma estilo de vida bem diferente dos pais, eles sabem que terão que tomar iniciativas pouco convencionais no futuro. “Viajamos há pouco para a Califórnia (EUA) e vimos um asilo muito bonito por lá. Ou seja, se tivermos que nos preocupar com o futuro, vamos poupar algum dinheiro para usufruir da velhice em grande estilo”, brinca Hugo.
Seja qual for a escolha do casal, a psicóloga Carolina Freitas aconselha que ela seja bem pensada e analisada. Prós e contras na mesa. “Ser pai e/ou mãe é uma experiência que pode ser escolhida. Existem várias experiências durante nossa vida pelas quais não passaremos por opção ou por não acontecer. A felicidade está ligada ao sentir-se bem, ter feito boas escolhas para sua vivência”, lembra.
Da mesma forma, a escritora gaúcha Martha Medeiros, mãe de duas filhas, aconselha as amigas a refletir muito sobre o tema. Questionada sobre o que achava dessa opção, escreveu a crônica Maternidade ou não, publicada no livro Coisas da vida (Ed. L&PM Pocket). “A gente nunca sabe como teria sido se… É por isso que, neste caso, compensa queimar bastante os neurônios antes de decidir. Não dá para pensar no assunto levando-se em conta apenas o momento que se está passando, mas o contexto geral de uma vida. Porque não ser mãe também é para sempre.”
Derrubando mitos
Especialistas nas áreas de psicologia, antropologia e educação financeira derrubam meias-verdades que falham ao definir o perfil desses casais que optaram por não ter filhos.
“Eles não gostam de criança”
Não querer ter filhos não tem relação direta com não gostar de crianças. Muitas mulheres e homens exercem o lado afetuoso e cuidadoso da paternidade e da maternidade com sobrinhos, filhos de amigos, crianças ao seu redor. O casal apenas não quer ter a responsabilidade de gerar e educar uma criança. Seja por falta de condições financeiras, seja por estilo de vida não compatível com filhos.
(Carolina Freitas, psicóloga)
“Toda mulher nasce com o instinto materno”
Podemos dizer que não existe amor materno como instintivo. O amor materno é relacional e, portanto, é construído na vida social. Por isso, um grande mito é aquele que diz que toda mulher deve ser mãe e que esse amor materno é natural quando, na verdade, a relação mãe e filho é construída, ou seja, há para ela a possibilidade da escolha da maternidade.
(Lia Zanotta Machado, professora do departamento de antropologia da UnB)
“Só é possível ser feliz quando se tem um filho”
Ter um filho para se sentir pleno é delegar a outra pessoa — que ainda nem nasceu — uma grande responsabilidade. E se aquela mãe ou aquele pai não se sentem realizados depois do nascimento de seus filhos, a criança acaba carregando o peso dessa frustração. Se um filho estiver nos planos para compartilhar (e não para carregar) essa felicidade, ótimo. O importante é que homens e mulheres saibam que são livres para escolher outro caminho, e que também poderão encontrar a felicidade em uma vida sem filhos.
(Verena Kacinskis, psicóloga)
“Não ter filhos é contra as leis da natureza”
A mulher não é uma fêmea submetida apenas aos desígnios de sua espécie. A mulher é um ser dotado de uma história e imersa em um universo simbólico — isso a distingue e lhe permite fazer escolhas pessoais quando a sociedade oferece outros caminhos de realização, além do da maternidade.
(Luci Helena Baraldo Mansur, psicanalista)
“Casais que não querem filhos são egoístas”
Não querer engravidar pode ser sim uma decisão egoísta, mas o casal tem o direito de querer liberdade e não vivenciar as turbulências, boas e não tão boas, de se criar um filho. Engravidar também tem suas razões egoístas: ter filhos porque todo mundo tem, por vaidade, para dar continuidade ao nome da família, para ser cuidado na velhice, para amar e ser amado. Então, ter ou não ter filhos pode ter seu lado egoísta. Isso não é necessariamente ruim. É melhor optar por não ter filhos a tê-los e abandoná-los ou negligenciá-los das mais diversas formas.
(Carolina Freitas, psicóloga)
“Minha vida financeira vai à ruína se eu tiver filhos”
Para se ter filhos é preciso entender que esse investimento é por, no mínimo, 25 anos, sem contar os 9 meses de gestação. Em uma pesquisa, o Instituto DSOP de Educação Financeira apurou que um casal gasta em média 40% do orçamento total da casa tendo um filho. Isso corresponderia a uma média de R$ 20 mil por ano para uma criança. Portanto, se há a intenção de se ter filhos, o melhor é saber na ponta do lápis o que vai se investido. Exemplos: maternidade, berço, assistência médica, roupas, escolas, alimentação, presentes de aniversário, Dia das Crianças, páscoa, formatura, carro aos 18 anos e, em alguns casos, casamento. O encarecimento para ter um filho nos dias atuais se dá porque, hoje, as necessidades criadas em uma sociedade de consumo são maiores.
(Reinaldo Domingos, educador financeiro)
“Eles vão sentir solidão na velhice”
Ter filhos não é garantia de tê-los próximos na velhice. Não são todas as relações entre pais e filhos que prezam pelo amparo. Se ter filhos garantisse cuidados na velhice, não teríamos, como hoje, muitos idosos abandonados. As boas relações são o que garantem a não solidão na velhice.
(Carolina Freitas, psicóloga)