Jornal Estado de Minas

A um voto da aprovação da descriminalização do aborto de anencéfalos

STF retoma julgamento hoje com cinco ministros a favor e um contra a interrupção da gravidez em caso de má-formação cerebral. Previsão é de que dois magistrados votem com a maioria

Diego Abreu

Brasília –
O Supremo Tribunal Federal (STF) está a um voto de selar a descriminalização do aborto de fetos anencéfalos. A decisão deverá ser referendada hoje, a partir das 14h, quando será retomado o julgamento sobre a possibilidade de antecipação terapêutica do parto de fetos com má-formação cerebral. O placar parcial é de cinco a um. Quatro ministros ainda têm direito a voto, sendo que dois deles – Ayres Britto e Celso de Mello – já manifestaram em julgamentos anteriores posições favoráveis à interrupção da gravidez no caso de anencefalia.
Os ministros iniciaram ontem o julgamento de ação proposta pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde (CNTS) que pede o reconhecimento do direito da antecipação do parto de anencéfalos sem a necessidade de decisões judiciais. Representando a entidade, o advogado Luís Roberto Barroso alertou que a letalidade dos fetos com anencefalia é de 100%. Ele destacou que a interrupção da gravidez não configura aborto.

Relator do processo, o ministro Marco Aurélio Mello fez um longo voto, de duas horas e quarenta minutos, no qual sustentou que não há cura ou chance de sobrevivência para um feto com anencefalia. “O anencéfalo é um natimorto cerebral. Jamais se tornará uma pessoa. Em síntese, não se cuida de vida em potencial, mas da morte segura. Resistem muito pouco tempo fora do útero”, disse o magistrado.

Marco Aurélio acrescentou que a não interrupção da gravidez de fetos anencéfalos configura um “alto risco” para a saúde da mulher. Antes de se manifestar sobre o tema central do julgamento, o relator observou que o Estado é laico e que, por isso, não pode promover a vontade de qualquer religião. “O Estado não é religioso, tampouco ateu. O Estado é simplesmente neutro”, frisou.

Em plenário, os ministros Rosa Weber, Joaquim Barbosa, Luiz Fux e Cármen Lúcia seguiram o voto do relator. Rosa defendeu o direito de proteção à vida da mulher. Para ela, a interrupção da gravidez de fetos com má-formação cerebral não configura violação ao Código Penal, que estabelece a proibição do aborto.

Em voto resumido, mas enfático, Cármen alertou que o Supremo não está debatendo o aborto. “O que estamos deliberando é sobre a possibilidade jurídica de uma pessoa grávida de um feto anencéfalo decidir por continuar ou não a gravidez”, observou. Ela avalia que cabe à mulher optar por manter a gestação.

Luiz Fux considera que não é justo acusar de crime uma mulher que antecipa o parto de um feto com anencefalia. Ele citou que 98% dos anencéfalos morrem nas primeiras horas após o parto. Marco Aurélio, por sua vez, alertou que 200 mil curetagens são feitas anualmente no Brasil como consequência de abortos malfeitos.

Único a votar contra o aborto de anencéfalos, Ricardo Lewandowski ponderou que o tema só poderia ser regulado por lei aprovada pelo Congresso. Segundo o ministro, o legislador isentou de pena apenas duas hipóteses de aborto: quando há perigo comprovado de vida para a mulher e em casos de estupro.

Anencefalia

É uma grave má-formação fetal que resulta da falha de fechamento do tubo neural (a estrutura que dá origem ao cérebro e à medula espinhal), levando à ausência de cérebro, calota craniana e couro cabeludo. A junção desses problemas impede qualquer possibilidade de o bebê sobreviver, mesmo se chegar a nascer. Estimativas médicas apontam para uma incidência de aproximadamente um caso a cada mil nascidos vivos no Brasil. De acordo com a Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo), pelo menos metade dos fetos anencéfalos apresenta parada dos batimentos cardíacos fetais antes mesmo do parto, morrendo dentro do útero. O diagnóstico é dado pelo exame de ultrassom e pode ser detectado em até três meses de gestação.

Entenda a questão

De acordo com o Código Penal, o aborto é crime, exceto quando é comprovado estupro ou risco de morte da mãe. Como o texto não trata de anencefalia, há anos juízes e tribunais têm decidido caso a caso sobre a interrupção da gravidez, em muitos deles concedendo os pedidos. Em outros, a ação perdeu o sentido, uma vez que o parto já havia ocorrido. Foram tantos casos que a controvérsia acabou chegando ao Supremo. O tipo de ação é uma arguição de descumprimento de preceito fundamental (usada para fazer valer um princípio da Constituição), apresentada em 2004 pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde. Para a confederação, impedir o aborto nesses casos fere uma garantia fundamental: a dignidade da mãe.

Decisão autoriza interrupção

Brasília – Em entrevista durante o intervalo da sessão, o ministro Marco Aurélio Mello avisou que, caso a decisão seja confirmada hoje, as mulheres não precisarão mais entrar na Justiça para pedir o direito de antecipar o parto. “Com a decisão do Supremo, o próprio serviço médico público estará autorizado a fazer a interrupção (da gravidez) com o diagnóstico, sem qualquer medida judicial”, afirmou o relator do caso. Ele observou, porém, que qualquer mulher diagnosticada com feto anencéfalo poderá manter a gravidez até o fim, caso deseje.

Parlamentares das bancadas evangélica e católica pediram ontem a abertura de um processo de impeachment contra o ministro Marco Aurélio Mello. Os congressistas querem que o ministro responda ao crime de responsabilidade por ter emitido juízo de valor sobre o tema em 2008, quando posicionou-se a favor da antecipação terapêutica do parto.

O deputado Eros Biondini (PTB-MG) argumenta que configura quebra de decoro um magistrado manifestar opinião sobre processo pendente de julgamento. Procurado, Marco Aurélio observou que já havia se manifestado sobre o tema em uma liminar que concedeu em 2004.

“O que eu fiz foi reiterar o meu convencimento. Não é adiantamento do ponto de vista. Estamos vivendo uma quadra interessantíssima de perda de parâmetros, de inversão de valores. No direito temos uma expressão que talvez não devesse ser transportada para o Congresso: o jus esperniand, que é o direito de espernear”, afirmou. (D.A)