Jornal Estado de Minas

Juiz anula adoção ilegal de 74 pessoas

Magistrado revoga sentenças e pede investigação sobre esquema de venda de "pais" estrangeiros para brasileiros

Brasília - Um grupo que coordena adoções fraudulentas para que brasileiros adultos obtenham cidadania europeia ao se tornarem “filhos” de estrangeiros tem um braço forte no Judiciário do país. Na comarca de Itapaci, a quase 200 quilômetros de Brasília, 74 sentenças aprovando pedidos de adoção, somente de fevereiro deste ano para cá, foram anuladas nessa terça-feira pelo juiz responsável, Rinaldo Aparecido Barros. Ele alega que alguém falsificou a assinatura dele nos documentos.

“Fiz um levantamento e, para meu espanto, verifiquei 74 ações, todas sentenciadas e arquivadas, sem o meu conhecimento. Minha assinatura aparece escaneada nos processos. O correto é ser a caneta”, afirma. Além de anular as sentenças, Barros pediu abertura de inquérito policial para apurar o caso. “Houve um crime grave aqui dentro, cujo tamanho ainda não sabemos o tamanho. Será feita uma correição e, se eu, como responsável, tiver que responder por algo, como omissão, que seja”, diz.

O esquema envolve um método de burlar as leis de imigração para obtenção de cidadania estrangeira. Brasileiros adultos, principalmente residentes ilegais em Londres, estão comprando pais adotivos, sobretudo portugueses e italianos, por até 15 mil euros. A negociação ocorre lá fora, mas quem chancela a adoção é a Justiça brasileira. São 75 processos de adoção suspeita espalhados por nove comarcas do interior goiano. O número é praticamente o mesmo levantado, agora, somente em Itapaci. As desconfianças do magistrado recaem sobre um assistente judiciário, que pediu afastamento na semana passada alegando ter dificuldades de locomoção, já que mora em Ceres, a 50 quilômetros de Itapaci.

“Não estou acusando o servidor, mas a informação que obtive é de que foi ele. Tudo tem de ser devidamente apurado”, destaca Barros. Ele aponta um rol de possíveis crimes. “Falsidade material, ideológica, uso de documento falso, fraude processual, fraude ao sistema de imigração europeu e brasileiro com caráter de crime transacional e até suspeita de tráfico de pessoas”, diz.

Barros solicitou também que a Interpol, polícia internacional, investigue o caso; enviou ofício para o Ministério da Justiça comunicar-se com autoridades europeias “para adoção de medidas urgentes para evitar as fraudes”; mandou cópia da lista de processos de adoção fraudulenta às embaixadas de Portugal, Itália, Espanha e Reino Unido; acionou o Grupo de Combate ao Crime Organizado do Ministério Público de Goiás e a Corregedoria do Judiciário estadual.

Coincidências

As 74 sentenças que tramitaram na comarca de Itapaci, nos últimos cinco meses, reconhecendo as adoções de brasileiros adultos por europeus, tem o mesmo texto, conforme Rinaldo Barros. “Diz, por exemplo, que adotante e adotado têm de conviver por sete anos. Em todos os processos, é esse mesmo período. Só tiveram o trabalho de mudar o número do processo e o nome das partes, o resto vem idêntico”, explica o juiz. O uso de documentos pessoais não autenticados foi outro problema identificado pelo magistrado, ao consultar as ações que não teriam passado por suas mãos. “Fizeram tudo só com fotocópia”, afirma.

O tempo de tramitação do processo era recorde. Em dois ou três dias, no máximo uma semana, conta Barros, a sentença favorável saía, já com o mandado do registro para o advogado levar ao cartório e providenciar a modificação na Certidão de Nascimento do solicitante. O procedimento normal é a própria comarca encaminhar cópia da sentença ao cartório, e não o advogado. Outra curiosidade das ações é que as sentenças já pediam o arquivamento imediato, em vez do rito normal, de 15 dias, para transitar em julgado. A gratuidade judiciária foi concedida nas 74 ações. Ou seja, ninguém pagou custas processuais. O benefício só se aplica quando as partes são pobres e, portanto, representadas pela Defensoria Pública.

 

Promotor pede investigação à PF

 

O promotor Alexandre Mendes Vieira, de Carmo do Rio Verde (GO), onde também tramitam processos suspeitos de adoção, pediu investigação à Polícia Federal. “Juntei toda a documentação relacionada aos processos, para que as autoridades policiais apurem o que parece uma rede eventualmente criminosa”, informou o representante do Ministério Público (MP) de Goiás.

Vieira afirma ter conhecimento de apenas um processo deferido na comarca de Carmo do Rio Verde. “Quanto aos que passaram por mim, temos negado, por questões formais, como utilização de procuração”, explica o promotor. Ele disse que o teor das ações chamou muita atenção do MP por se tratar de um tema tão raro no direito brasileiro. “Adoção de adulto é algo muito incomum, quase nunca fazemos”, explica.

Com as partes em circunstâncias mais peculiares ainda – adotante e adotado morando em países diferentes, mesmo estrangeiro adotando vários brasileiros, entre outros aspectos -, esses processos tornaram-se ainda mais inusitados aos olhos do MP. O Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (Gaeco) do próprio MP já foi acionado, na semana passada, pela procuradora Laura Bueno, que estranhou cerca de 10 ações de adoção que chegaram à segunda instância do MP recentemente.

CNJ defende apuração rigorosa

A participação de servidores do Judiciário de Goiás nas adoções irregulares será investigada pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ). A corregedora nacional de Justiça, ministra Eliana Calmon, disse ontem que há indícios de fraude e que as acusações contra os servidores são graves.

Com a determinação do CNJ, a Corregedoria de Justiça de Goiás terá de começar a apurar imediatamente as denúncias. Eliana Calmon determinou que o Judiciário goiano informe sobre os resultados do levantamento em um prazo máximo de 60 dias. Além disso, no despacho, a ministra estabeleceu ainda a necessidade de repassar informações a outras entidades, como o Conselho Nacional do Ministério Público, a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e a Superintendência da Polícia Federal em Goiás.

A informação de que alguns pedidos de adoção eram deferidos sem a consulta prévia ao Ministério Público causou estranhamento à corregedora nacional de Justiça. Para a ministra Eliana Calmon, o MP deveria ser ouvido nesses casos, antes da autorização para alterar a certidão de nascimento dos cidadãos brasileiros. “São processos de adoção internacional, é preciso ter muito cuidado”, comentou.

A ministra também afirmou que as adoções não deveriam ter sido feitas por meio de procuração. Nos casos que tramitaram em comarcas do interior de Goiás, os falsos pais adotivos estrangeiros e os cidadãos brasileiros a serem adotados sequer passaram pelo tribunal. Todo o trâmite foi feito apenas por meio de procurações que advogados contratados por integrantes do grupo apresentavam para conseguir as autorizações para as adoções fraudulentas. Para especialistas, a presença das partes deveria ser indispensável para o deferimento dos processos. (Com Helena Mader e Renata Mariz)