Brasília - Os 170 índios guarani-kaiowá que há quase um ano ocupam parte de uma fazenda da cidade de Iguatemi, a cerca de 460 quilômetros da capital sul-matogrossense, Campo Grande, e cuja situação ganhou destaque nacional nos últimos dias não terão que deixar a área. A medida vale pelo menos até que a real situação da propriedade seja esclarecida ou que laudos antropológicos descartem se tratar, como afirmam os índios, de terra tradicional indígena.
Segundo a Justiça de Mato Grosso do Sul, diferentemente do que os índios, as organizações indigenistas e o próprio Ministério Público Federal (MPF) em Mato Grosso do Sul chegaram a anunciar, a decisão do juiz federal Sergio Henrique Bonachela, da 1ª Vara Federal em Naviraí (MS), constitui liminar de manutenção de posse e não de reintegração da área ocupada por 100 adultos e 70 crianças guarani-kaiowá desde novembro de 2011.
O detalhe jurídico que passou despercebido por muitos pode parecer trivial, mas, na prática, significa que o oficial de Justiça encarregado de fazer cumprir a sentença vai limitar-se a notificar os índios de que o terreno pertence, até prova em contrário, aos proprietários da Fazenda Cambará. O objetivo de uma liminar de manutenção é apenas preservar a posse de quem já vinha ocupando a área até que a situação seja esclarecida. Mesmo assim, a Fundação Nacional do Índio (Funai) e o MPF ajuizaram recursos contra a decisão no dia 16 de outubro e aguardam o julgamento.
De acordo com o promotor da República Marco Antonio Delfino, foram os próprios responsáveis pela fazenda que solicitaram a manutenção de posse. A decisão do juiz federal, favorável ao pedido, foi dada no último dia 17 de setembro. Como não há representação da Justiça Federal em Iguatemi, a incumbência de notificar o grupo indígena foi repassada à Justiça Estadual, por meio de carta precatória. Legalmente, o prazo para que o oficial de Justiça local notifique todo o grupo termina no próximo dia 8.
Segundo o diretor do cartório do Fórum de Iguatemi, Marco Antonio Arce, o oficial de Justiça só não começou a notificar antes os índios guarani-kaiowá devido à repercussão que o assunto ganhou nos últimos dias por causa da interpretação de uma carta que lideranças indígenas tornaram pública.
No texto endereçado ao governo e à Justiça brasileira, os líderes indígenas falam na possibilidade de “morte coletiva” ao referir-se aos possíveis efeitos da decisão da Justiça Federal. Dizem que, após anos de luta, o grupo já perdeu a esperança de sobreviver “dignamente e sem violência” na região onde, segundo eles, estão enterrados seus antepassados. Por fim, informam, em tom de ameaça, que decidiram “integralmente não sair com vida e nem mortos” e pedem que, se for determinado que eles saiam da área, governo e Justiça enviem "vários tratores para cavar um grande buraco para jogar e enterrar" os corpos.
Embora a palavra suicídio não seja empregada nenhuma vez, a interpretação de que o grupo estaria ameaçando se matar em sinal de protesto gerou uma onda de comoção que ganhou as redes sociais e chegou a ser noticiada por veículos de imprensa internacionais.
De acordo com o Conselho Indigenista Missionário (Cimi), embora, na carta, o grupo não tenha falado em suicídio, mas sim “em morte coletiva no contexto da luta pela terra”, a medida extrema tem sido recorrente entre os índios. A organização ligada à Igreja Católica afirma que a situação de confinamento em áreas exíguas, a falta de perspectivas, a violência aguda e a impossibilidade de retornarem às terras tradicionais a que estão sujeitos os vários grupos indígenas que vivem no estado levaram ao menos 555 índios a, isoladamente, tirar a própria vida entre os anos 2000 e 2011. Especificamente em relação aos guarani-kaiowá, o Cimi lembra que, embora já haja 43 mil deles espalhados por Mato Grosso do Sul, apenas oito terras indígenas foram homologadas para o grupo desde 1991.
De acordo com o Ministério Público Federal, até três meses antes de ocupar 2 dos 762 hectares da Fazenda Cambará, os 170 índios viviam acampados às margens de uma estrada vicinal, na mesma cidade. Na noite de 23 de agosto, o acampamento foi supostamente atacado por pistoleiros que, segundo os índios, atearam fogo nas barracas e feriram várias pessoas. O MPF tratou o episódio como genocídio e pediu à Polícia Federal que apurasse as denúncias. Ainda segundo o MPF, a área ocupada faz parte de uma reserva de mata nativa, que não pode ser explorada economicamente e está sendo estudada por antropólogos da Funai que, em breve, devem divulgar suas conclusões.