A cidade se abraça nas ruas. O mendigo encostado no banco da praça diz que também morreu um pouco. “Nada faz mais sentido”, repete, cheio de razão. Até ontem, cerca de 150 corpos foram sepultados. A repetição machuca mais. Em apenas um dos cemitérios, o maior da cidade, os coveiros repetiram o gesto 52 vezes em apenas sete horas. Faltou caixão. Donos de funerárias precisaram comprar em outras cidades. Os cortejos se misturavam. O choro também.
AMPARO Uma senhora de 54 anos enterrou dois filhos, de 20 e 17, e depois foi abraçar uma desconhecida que chorava ao lado. Era a mãe de Roger Barcelos Farias, de 22. Ele era segurança da Boate Kiss. Trabalha lá havia apenas três meses. Depois que o incêndio começou, entrou e saiu várias vezes. Salvou algumas vidas. Menos a sua. Inconformada, a mãe gritava para a cidade inteira ouvir. “Por que, meu filho? Por que você voltou? Para cada enterro, uma equipe médica. Vez por outra, familiares não suportavam a emoção e precisavam ser amparados.
No Centro Esportivo de Santa Maria, onde ocorreu um velório coletivo desde o dia da tragédia, fotos das vítimas eram colocadas no caixão. Devido ao grande número de enterros, era preciso obedecer a uma fila. Os cemitérios não tinham estrutura para realizar diversos sepultamentos simultâneos. “Estamos acostumados com sofrimento, mas feito esse aqui nunca vamos esquecer. O senhor já viu uma multidão chorando? Pois bem. Como uma pessoa pode não carregar essa lembrança para o resto da vida? Impossível”, disse um dos funcionários. A espera prolongava o sofrimento. “Eu posso explicar 10 vezes a você, mas nunca entenderá o que estou sentindo. Só eu posso sentir essa dor. Mais ninguém. Eu morri junto com o meu filho. Só quem passa por isso pode saber”, respondeu Amara Pereira, de 53, com uma voz firme, quase como um desabafo, a uma repórter de televisão que lhe perguntou três vezes seguidas o que ela estava sentindo.
CONFORTO No ginásio, a dor aproximava desconhecidos. Vez por outra, parentes iriam confortar aqueles que velavam um corpo ao lado. Difícil ouvir os diálogos de dois pais que perderam dois filhos de 20 anos. “Eles são mártires. Morreram. Deixaram a lição de que é preciso cuidar melhor dos jovens”, dizia o enfermeiro Eduardo Penna e Souza, de 54. Perdeu o filho David Santiago e Souza, que cursava odontologia na Universidade Federal de Santa Maria. “Meu filho morava só. Veio apenas para estudar. Vivia bem e feliz.” Eduardo estava falando para Walter Souza. “Meu menino tinha 20 anos. É só isso que tenho a dizer”, expressou Walter.
Um pouco depois, o governador Tarso Genro chegou ao local e conversou durante cinco minutos com ele. Antes de chegar até Walter, que era o último do ginásio, abraçou todas as mães que encontrou pelo caminho encostadas nos caixões. Algumas choraram. Outras seguraram as lágrimas para escutar do governador que a Polícia Civil estava trabalhando duro para realizar um inquérito benfeito. “Vamos encontrar todos os responsáveis. Eu garanto.” Tarso Genro já tinha virado as costas e nem ouviu quando uma delas disse baixinho. “Governador, só queria o meu filho de volta. Nada mais.”
A dor sem fim ainda pode se multiplicar: são 129 jovens feridos, dos quais 76 corriam risco de morte, segundo afirmou o ministro da Saúde, Alexandre Padilha, que visitou 39 vítimas internadas na capital gaúcha.