A Boate Kiss, em Santa Maria, palco de uma das maiores tragédias do país, onde um incêndio matou 234 jovens na madrugada de domingo, não poderia estar funcionando, de acordo com decreto do governo do Rio Grande do Sul. A lei, válida em todo o território gaúcho, foi editada em 1998 e obriga casas noturnas construídas em casas térreas a terem ao menos duas saídas, sendo uma de emergência, em lados opostos do imóvel. A casa de shows onde aconteceu a tragédia tinha apenas uma porta, que funcionava como entrada e saída, o que dificultou a retirada dos clientes quando o fogo começou. Para facilitar o salvamento, os bombeiros foram obrigados a abrir um buraco na parede externa do imóvel. Ontem, a Polícia Civil cumpriu mandado de busca e apreensão em outra casa noturna e um restaurante de propriedade de Mauro Hoffmann, um dos sócios da boate, que está preso.
Também estão presos temporariamente desde segunda-feira o outro sócio do estabelecimento, Elissandro Callegaro Spohr, o Kiko Sphor, como é mais conhecido, e dois integrantes da banda Gurizada Fandangueira: o vocalista Marcelo de Jesus dos Santos e o produtor Luciano Augusto Bonilha Leão. Segundo o Ministério Público, eles estariam obstruindo a coleta ou manipulando as provas obtidas pelos peritos. Isso porque a polícia não teve acesso às imagens do circuito interno de câmeras da boate, que teriam desaparecido após o incêndio. Os dois sócios da Kiss estão com seus bens bloqueados por determinação judicial. De acordo com o advogado de Hoffmann, Mauro Cipriani, seu cliente era sócio de Spohr há cerca de um ano, mas há 15 atua no ramo de entretenimento, com a Boate Absinto, além do restaurante Floriano.
Hoffman está desde ontem no presídio de Santo Antão, nas proximidades de Santa Maria. Já Spohr segue sob custódia policial internado em um hospital de Cruz Alta. Ele está em tratamento de desintoxicação devido à inalação de fumaça do incêndio. Os dois sócios da Kiss já tiveram passagem pela polícia gaúcha e a boate é alvo de processo na Justiça por danos morais. Kiko Spohr é acusado de agredir clientes em duas ocasiões e ainda de se envolver em um acidente de trânsito com lesão culposa. As duas queixas de agressão contra Spohr foram comunicadas por clientes da danceteria. Já a ocorrência de trânsito foi encontrada no banco de dados do Departamento Estadual de Informática Policial. Hoffmann, por sua vez, é investigado pelo crime de estelionato, mas a polícia não forneceu maiores detalhes sobre o inquérito. Ele se entregou segunda-feira à polícia, depois que sua prisão foi decretada por cinco dias.
INDICATIVOS
O delegado regional de Santa Maria, Marcelo Arigony, afirmou ontem que a Polícia Civil tem “diversos indicativos” de que a Boate Kiss estava irregular e não podia estar funcionando. “Se a boate estivesse regular, não teria havido quase 240 mortes”, afirmou o delegado. Segundo ele, a prova preliminar aponta fragilidade de “cinco ou seis circunstâncias relacionadas à casa noturna”. Entre elas, ele cita a porta e a lotação. “A prova aponta que havia irregularidades, mas isso ainda é preliminar e precisa ser corroborado pelos depoimentos das testemunhas e os laudos periciais.”
Arigony diz que há a previsão de que mais de mil pessoas sejam ouvidas no inquérito. “Haverá a responsabilização de quem ou qual órgão tiver que ser responsabilizado”, afirmou, acrescentando que esperava receber a documentação da prefeitura e do Corpo de Bombeiros sobre a situação do local ainda ontem. O policial confirmou que a maior parte das provas colhidas até agora veio a partir das mais de 40 testemunhas já ouvidas. Além da falta de porta de emergência, a polícia suspeita que os extintores de incêndio eram falsificados. “Pela prova testemunhal, temos indícios de que os extintores da casa não funcionavam ou mesmo podiam ser falsificados”, citou. Segundo o Corpo de Bombeiros, o alvará da casa estava vencido, mas como os proprietários já tinham entrado com pedido de renovação, a Kiss continuou funcionando.
Danos morais
Em 25 de agosto de 2012, a boate Kiss foi condenada a indenizar a psicóloga Patrícia Jovasque Rocha, de 21 anos, que teria sido obrigada a permanecer no local até as 6h porque havia perdido sua comanda. O caso ocorreu em novembro de 2011. Os advogados da boate já recorreram e aguardam a decisão. A psicóloga conta que teve sua câmera e a comanda furtadas e o gerente da boate a obrigou a pagar a conta. “Depois de um tempo de conversa ele me deixou pagar apenas o que eu tinha consumido, mas me fez esperar até o fim da balada, até que todos fossem embora. Foi por isso que decidi entrar com o processo, pelo constrangimento”, conta a psicóloga. Em primeira instância, a juíza Karen Emília Antoniazzi Wolf condenou o estebelecimento a pagar uma indenização de R$ 10 mil.