Jornal Estado de Minas

Filhos do aço

Bairro com casas erguidas para os operários da Ferrovia está abandonado no Sul de Minas

Daniel Camargos
Enquanto o mato cresce, janelas caem e vacas pastam no bairro Tebas, em Passa-Vinte - Foto: Beto Magalhaes/EM
Passa-Vinte e Resende (RJ) – O poeta grego Homero exaltou em sua obra Ilíada a riqueza de Tebas, que chamou de cidade das 100 portas. “Por cada uma das quais saem 200 guerreiros com os seus cavalos e seus carros”, escreveu o grego. O nome também remete a outra cidade da civilização antiga, do Egito, mas em Minas Gerais o Bairro Tebas, em Passa-Vinte, no Sul do estado, é sinônimo de desperdício e abandono. No lugar das míticas 100 portas são 99 casas abandonadas, como numa cidade fantasma. Algumas perderam o telhado, outras são tomadas pelo mato e servem de pasto para vacas.
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Tebas, na pequena cidade distante 350 quilômetros de Belo Horizonte, foi erguida pela Construtora Rabelo, para abrigar os trabalhadores que acorreram à cidade no final da década de 1970 para participar da construção da Ferrovia do Aço. O Estado de Minas publica desde anteontem série de reportagens sobre os 40 anos do anúncio da obra faraônica, mostrando os filhos que os operários deixaram pelo caminho, os reencontros que ocorreram nas últimas décadas e também o rastro de desperdício.

“Quando acabou a obra, em 1985, o pessoal foi embora e ninguém deu importância”, explica o prefeito de Passa-Vinte, Humberto Sávio Martins (PSB). De acordo com Martins, os prefeitos anteriores sempre tiveram a esperança de receber o bairro e as casas como doação, mas as negociações nunca foram concretizadas. O atual prefeito mudou a estratégia e quer desapropriar parte do terreno e das casas. “Não sei ainda, mas 10, 15 ou 20 casas”, estima. O déficit habitacional em Passa-Vinte, segundo cálculo do prefeito, é de 40 famílias, que vivem de aluguel ou moram de favor com parentes.

Apesar de estar apodrecendo e desmoronando os planos do bairro já foram mais ambiciosos. O antigo prefeito Tales da Fonseca (PSB) revela que tentou transformar o bairro em um local sem energia elétrica, abastecido somente com placas de captação da energia solar. “Não conseguimos a posse delas. Chegamos até a pleitear outro terreno, mas também sem sucesso”, lembra o ex-prefeito.

A localização do bairro, no alto da cidade, que por sua vez fica encravada em um vale na Serra da Mantiqueira, permitiria, segundo o ex-prefeito, que a energia captada no local fosse suficiente para abastecer toda a cidade de Passa-Vinte. “A ideia era fazer a partir do Bairro Tebas a primeira cidade sustentável”, planejou Fonseca.

A reportagem tentou contato com a Rabelo – que não é mais construtora e se transformou em uma empresa rural –, mas não localizou os antigos donos. O único funcionário da Rabelo na cidade, o vigia Edimar Pereira de Almeida, explica que não tem muito o que fazer para preservar o bairro e tenta capinar o mato alto quase diariamente. As caixas-d’água abandonadas e a possibilidade de formação de poças alertam para o perigo de focos de reprodução do mosquito da dengue, mas, por enquanto, não há casos na cidade.

Passa-Vinte está na divisa com o Rio de Janeiro. Distante poucos quilômetros do centro urbano, no distrito de Fumaça, que pertence ao município de Resende, mais desperdício. Quase uma dezena de grandes máquinas de terraplanagem enferrujam. As máquinas foram usadas pelas empreiteiras da Ferrovia do Aço na construção e desde a década de 1980 estão abandonadas, contrastando com a paisagem bucólica e rural de Fumaça.

ESQUELETOS A incompleta Ferrovia do Aço custou US$ 4 bilhões e foi paga com dinheiro público. O desperdício não se limita às pequenas cidades. Entre Belo Horizonte e Itabirito seis túneis, que somam nove quilômetros de extensão, e quatro viadutos inacabados, repletos de matos, compõem uma herança maldita. Tanto que a Caixa Econômica Federal tenta vender um terreno de quase 50 hectares da extinta Rede Ferroviária Federal S.A. (RFSA), na antiga Fazenda Marzagão, que pertence à Secretaria de Patrimônio da União (SPU).

Já foram abertas duas concorrências públicas: a primeira em maio de 2011 e a segunda em junho do ano passado. Nenhuma proposta foi apresentada e o imóvel ficou disponível na modalidade venda direta, sem concorrência pública. Nesse caso, também não houve interessado. A Caixa reavaliou a área e o preço atual é R$ 21,9 milhões. Será lançada uma nova concorrência pública. Para tentar se livrar da “herança maldita”, o governo federal possibilita o parcelamento em até 60 vezes, com taxa de juros de 10% ao ano.

A RFFSA foi privatizada em 1996, no governo de Fernando Henrique Cardoso (PSDB) e está sob a concessão da MRS Logística. Planejada para ligar Belo Horizonte ao Rio de Janeiro e São Paulo, a ferrovia teve o projeto reduzido. Começa em Itabirito e vai até Volta Redonda (RJ). De Itutinga, no Sul de Minas, deveria sair outro ramal que iria até São Paulo, mas não foi concluído.