Jornal Estado de Minas

Moradores relembram o conservadorismo das cidades à época de obras da Ferrovia do Aço

Relacionamentos com trabalhadores podiam destruir a reputação das moças

Daniel Camargos
Maria das Graças Barbosa, a Mulata, foi Rainha do Carnaval de Congonhas e namorou vários estrangeiros que vieram participar da construção - Foto: Beto Magalhães/EM/DA Press
Itabirito, Congonhas e Jeceaba – A Ferrovia do Aço carrega em seu traçado muito mais que as 110 milhões de toneladas de minério de ferro por ano que deixam as montanhas de Minas Gerais para se transformarem em aço. Deixou também pelo caminho filhos abandonados, famílias felizes, viadutos, túneis e um rastro de desperdício, como o Estado de Minas mostra em reportagens desde domingo, 40 anos após o anúncio da construção de uma das maiores obras do governo militar. Nas cidades que receberam os acampamentos dos trabalhadores histórias que estão nos subterrâneos são contadas, mas sem revelar os nomes, pois ainda machucam seus protagonistas e remetem a estigmas ultrapassados.
Quando milhares de operários estavam acampados em Congonhas, na Região Central do estado, a boate Patropi, uma das mais movimentadas da cidade, promoveu uma grande festa. Uma moça – de tradicional família – conheceu um operário que trabalhava na construção da Ferrovia do Aço. “Quando demos falta dela não sabíamos onde ela estava. Todo mundo começou a procurar e a rua encheu de gente. Quando descobriram que ela havia ido para Conselheiro Lafaiete com o rapaz a reputação dela acabou”, lembra uma amiga. Após o episódio a moça foi embora da cidade e seguiu a vida em São Paulo.


O ambiente em Madre de Deus de Minas, distante 270 quilômetros da capital, foi descrito em uma reportagem de janeiro de 1979, em que o texto dizia: “Madre de Deus se viu subitamente invadida por tratores D-9 e moto-scrapers e por centenas de peões que, aos sábados, vinham se embriagar na cidade e desencaminhar as moças”.

A reportagem mostra ainda que os moradores de Madre de Deus de Minas reclamavam de terem que conviver com os operários: “…trabalhadores violentos e embriagados que deixaram crianças, enquanto as mães fugiam para Belo Horizonte e São Paulo”. Na época, o presidente do sindicato rural da cidade, Sebastião Batista do Nascimento, classificou os atos como atentados à moral e desafio às tradições. Para ele era fundamental para uma cidade pequena “preservar a moral e os bons costumes”.

Outra história que reflete o conservadorismo da sociedade à época ocorreu em Itabirito, também na Região Central do estado. Uma jovem, pertencente a uma das famílias mais ricas da cidade, ficou grávida de um operário, que não quis assumir a responsabilidade e retornou para Manaus, no Amazonas, sua cidade natal. “O pai, o irmão e os tios da moça foram armados até lá e buscaram o rapaz, que teve que casar, assumir o filho e está até hoje morando na cidade”, conta um dos colegas do operário.

O clima de alerta em relação aos forasteiros era reforçado nas igrejas. “Cuidado com o povo de fora. Não se enganem com esses rapazes que usam calça e blusa US Top. Eles só querem se aproveitar das moças”, pregava o padre nas missas de domingo. Quem relata é Ricardo Jack Orlandi, que saiu de Diamantina, no Vale do Jequitinhonha, e foi para Itabirito trabalhar nas obras da ferrovia.

A marca US Top a que o padre fez referência teve uma das propagandas mais famosas do Brasil na década de 1970, que marcou época e ditava o gosto da juventude. A música do comercial foi um grande sucesso em 1976: “Liberdade é uma calça velha/ azul e desbotada/ que você pode usar/ do jeito que quiser/ não usa quem não quer”.

O sermão do padre conservador era dirigido aos milhares de operários que, assim como Ricardo, mudaram o cotidiano da cidade. Itabirito, distante 55 quilômetros de Belo Horizonte, tinha 22,4 mil habitantes na década de 1970, metade da população atual, de 45 mil. “As pessoas tinham um conceito ruim do peão. Era um estigma mesmo”, lembra a mulher de Ricardo, Maria Aparecida de Almeida Orlandi. Quando eles ainda namoravam os pais dela não gostavam do relacionamento com um forasteiro, mas com o tempo as diferenças acabaram.

O distrito de Córrego do Bação, em Itabirito, abrigou um dos maiores acampamentos à época da construção da ferrovia. Mais de 3 mil operários moraram no lugar. Proprietário do principal estabelecimento do local, o Bar do Chifrão, Domingos Sávio Braga, hoje com 60 anos, lembra da movimentação e de ter faturado bem, conseguindo adquirir grande parte do patrimônio que tem atualmente. Ele também não esquece das festas que ocorriam. “Toda as mulheres que estavam encalhadas arrumaram alguém. Apareceu um chinelo torto para cada pé torto”, brinca Domingos.

Em Congonhas, Maria das Graças Barbosa, atualmente com 60 anos, também não esquece das festas. Mulata, como é conhecida, foi a Rainha do Carnaval congonhense por vários anos. “Namorei engenheiro suíço, alemão e outros”, lembra Mulata, que chegou até a participar de concurso de beleza na extinta TV Itacolomi, em Belo Horizonte.

Décadas depois os tempos são outros. Um dos médicos de Jeceaba, José Antônio Tavares Facuri explica uma das diferenças: “O acesso aos anticoncepcionais é fácil e gratuito”. A cidade viveu nos últimos anos uma ebulição semelhante à da época da obra da Ferrovia do Aço com a construção da usina siderúrgica da Vallourec & Sumitomo Tubos do Brasil (VSB). Milhares de forasteiros voltaram a frequentar a cidade, mas o impacto nos costumes não chegou nem perto do que ocorreu passado.