Corpos amontoados, sangue escorrendo pelas escadas “como cascatas”, fuzilamentos em celas fechadas, “tapetes de mortos” pelo chão, cenas de puro sadismo semelhantes às dos “campos de concentração nazistas”. As descrições dramáticas das testemunhas de acusação começaram a ser narradas nesta segunda-feira no primeiro dia de julgamento do Massacre do Carandiru, ocorrido em outubro de 1992, que resultou na morte de 111 presos. Na terça-feira (16), devem começar a ser ouvidas nove testemunhas da defesa.
No primeira etapa do julgamento, três ex-detentos, um chefe dos agentes penitenciários do Carandiru e um perito, convocados pela acusação, deram depoimentos contundentes e descreveram a ação de policiais atacando os presos sem serem ameaçados. Os dois primeiros ex-detentos a depor pediram para que os 24 PMs presentes (dois estavam doentes e não compareceram), acusados de participarem do massacre, fossem retirados da sala. As outras duas testemunhas permitiram a presença dos réus.
O agente penitenciário Moacir dos Santos, diretor de disciplina e segurança do Carandiru na época do massacre, disse que a cena do crime foi modificada pelas autoridades e que ele e outros agentes chegaram a ser ameaçados com revólveres para não testemunharem as atrocidades contra os detentos. O perito Osvaldo Negrini Neto contou que precisou entrar escondido na cena do crime, no carro de um delegado. “Os militares disseram que não havia campo para a perícia.” Depois, quando passou a fazer o trabalho da perícia, o “local dava nítida sensação de ter sido violado”. “Cada corpo tinha 4, 5 balas. Mesmo assim, não havia cápsulas nem projéteis no chão”, recorda-se.
No primeiro depoimento, Antonio Carlos Dias teve um acesso de choro de dois minutos. Dias estava preso no Pavilhão 9 havia pouco mais de 20 dias, condenado por assalto. Depois da entrada dos policiais, segundo se recorda, os tiros de metralhadora lembravam batidas em lata. Os detentos jogaram fora estiletes, barras de ferro e de madeira, prontos para se entregarem. Não havia reféns, nem rebelião. Os policiais mandaram que ele deixasse a cela nu. Em seguida, Dias passou por um corredor polonês formado por PMs que deram socos, pauladas e estocadas. No segundo andar, o grupo se deparou com um amontoado de corpos. Os presos eram obrigados a escalar os corpos para chegarem ao pátio. “Quem caísse enquanto escalava, morria. Um preso na minha frente foi morto ao escalar esse amontoado de corpos.”
Marco Antônio de Moura, o segundo a depor, afirmou que a PM exigiu que os presos gritassem “Deus cria, a Rota mata e viva o Choque”. Ele estava no quarto andar, quando um PM colocou o cano de uma metralhadora no buraco da porta da cela e iniciou os disparos. Moura foi atingido, com um disparo de pistola 9 milímetros que o fez permanecer por 4 meses na enfermaria.
Nos depoimentos das testemunhas, os promotores Fernando Pereira da Silva e Márcio Friggi tentaram mostrar aos jurados que os PMs não agiram em legítima defesa nem cumpriram o estrito dever legal ao longo da operação. Uma das teses a ser construída pela advogada de defesa, Ieda Ribeiro de Souza, é de que os PMs agiram em legítima defesa. Diante dos depoimentos assertivos da acusação, ela tentou mostrar contradições e falhas nas declarações, na comparação com narrativas feitas em 1993 durante o inquérito policial militar. A defesa pretende ainda desqualificar a apuração das provas feitas no processo e apontar a impossibilidade de individualizar as ações. Como não foi feita perícia das armas, não se pode apontar as autorias dos disparos.