Jornal Estado de Minas

Embranqueceram a imagem da padroeira do Brasil

Réplica da imagem de Nossa Senhora Aparecida que será dada ao papa hoje tem pele escura, mas estátuas e santinhos de traços finos e cor clara são facilmente encontrados na capital

Sandra Kiefer

Artistas nem sempre são fiéis ao original, que tem cor de barro queimado, e mudam até os traços da santa - Foto: Maria Tereza Correia/EM/D.A Press Em visita ao Santuário Nacional de Aparecida, na cidade de mesmo nome, em São Paulo, o papa Francisco vai receber de presente hoje uma réplica da imagem de Nossa Senhora da Conceição, mais conhecida como Aparecida por ter sido encontrada por pescadores no fundo do Rio Paraíba, no início do século 18. Exposta em uma redoma de vidro, a padroeira do Brasil tem cor de barro queimado, enegrecido pelo lodo do leito do rio e pela fuligem das velas dos cerca de 10 milhões de fiéis que visitam anualmente o santuário, na maior peregrinação do mundo em homenagem a Maria, mãe de Jesus.

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 Longe dali, porém, a santa tem sido retratada de forma livre, confeccionada por variados artistas em diferentes processos artesanais e industriais, incluindo peças importadas da China. Nem sempre as cópias obedecem ao original. Para indignação de parte dos devotos, Nossa Senhora Aparecida ultimamente passou a ser encontrada com tom de pele mais claro em relação à imagem original e traços finos, quase europeus. “Nossa Senhora Aparecida está desbotada, quase branca. Achei uma aberração, uma falta de respeito com a história da santa, que sempre foi negra”, protesta a artesã Neusa Santos, de 82 anos, mostrando santinhos com a imagem mais pálida e manto vermelho, destoando do tradicional azul com detalhes dourados.

Para continuar fabricando seus estandartes de santos, a artesã foi obrigada a reproduzir uma cópia antiga que deixou guardada em casa, mais fiel ao original. “Em uma das lojas, a atendente chegou a sugerir que eu passasse um lápis de cor por cima, escurecendo a imagem. Da minha mão é que não vai ser, pois tenho medo de receber um castigo da santa”, diz. A reportagem do Estado de Minas fez um teste, percorrendo cinco lojas da Região Central de BH, nas imediações do Mercado Novo. Em três delas, as estampas impressas eram mais claras e a imagem em gesso ou madeira aparentava ser igual à autêntica.

“As pessoas ainda são muito preconceituosas, sabe? Outro dia, chegou uma senhora ao meu ateliê e disse com todas as letras: preto na minha casa não entra, nem santo”, contou o santeiro de Santa Luzia Carlos Perret, de 50 anos, artesão desde os 15. Filho de pai francês e mãe negra, o artista já recebeu inúmeros pedidos para alterar a cor da pele de santos como Aparecida e Santa Efigênia e do irmão dela, São Elesbão, de origem africana. Recusou todos eles. “Embora meu pai tenha sido branco, tenho uma mãe que não é loura e não posso fazer isso. Deixo claro para o cliente que melhor seria ele trocar de devoção por uma santa branca. Infelizmente algumas pessoas colocam a questão estética na frente da própria devoção ao santo”, lamenta.

Virgem morena


“Não temos controle sobe a livre produção das imagens de Nossa Senhora Aparecida, cantada como Virgem Morena, cor que amálgama as diferentes raças que formam o nosso povo. Quanta beleza e originalidade há nisso!”, ensina dom Darci José Nicioli, bispo auxiliar da Arquidiocese de Aparecida. Ele garante apenas a autenticidade da imagem oferecida ao papa Francisco, entalhada em cedro brasileiro, com pátina de cera de abelha. “Será um belíssimo presente, posso garantir", afirma.

Como de outras vezes, o bispo de Aparecida encomendou a peça ao escultor Paulo Henrique Ferreira Pinto, o Sôdem, natural de Campanha, região do Sul de Minas, terra de tradicionais santeiros. Devoto de Aparecida, Sôdem comprou “panos novos” para conhecer o papa Francisco de perto e acompanhar a entrega da imagem feita pelas próprias mãos. “Minha imagem é de madeira, amarronzada e com o fundo escurecido, bem pretinho. A santa tem de ser igual ela é, mas algumas pessoas andam querendo modernizar demais as coisas”, critica o santeiro, que recebeu elogios de todo o país ao ter o seu trabalho divulgado na internet. “Mas houve comentários maldosos, como o de uma mulher que disse assim: ‘Duvido que essa santa pretinha vá ser venerada no Vaticano’. Nem dei ouvidos”, afirmou.