Após mais de quatro horas de depoimento do major Marcelo Gonzales Marques, um dos 25 réus desta segunda etapa do julgamento do Massacre do Carandiru, o juiz Rodrigo Tellini de Aguirre Camargo decidiu ouvir mais um réu, o tenente-coronel Carlos Alberto Santos, que comandava uma das tropas que invadiram o presídio no dia 2 de outubro de 1992, após uma rebelião de presos. O depoimento de Santos começou por volta da meia-noite.
Ao iniciar o depoimento, Santos disse que “os poucos disparos que fez, fez para se defender”. Naquele dia, segundo ele, estava se preparando para sair às ruas com a sua tropa quando recebeu a notícia de que havia uma rebelião no Carandiru. Então, recebeu a determinação de ir com a tropa para o local. Lá, junto com outros oficiais da Polícia Militar, particpou de uma reunião com diretores do presídio e outra pessoas, civis, que não soube precisar quem eram. Na reunião, os oficiais da Polícia Militar receberam a informação da situação do Pavilhão 9. “Existia a preocupação dos civis de que isso [a rebelião] poderia se estender para outros pavilhões e que já existiam mortos no Pavilhão 9 e armas de fogo”, disse.
Foi então traçado um planejamento de como as tropas entrariam no local para conter a rebelião. “Fomos para um pátio que dá acesso ao Pavilhão 9 e colocamos a tropa em forma”, relatou. A ideia inicial era que a Rondas Ostensivas Tobias Aguiar [Rota] entrasse por último. No entanto, após ouvirem tiros, houve uma mudança de estratégia e a Rota foi a primeira a entrar no local. “Ouvimos muita gritaria no interior do Pavilhão 9. Ouvíamos esse quadro de terror diante desse portão que estava à nossa frente. E pedíamos para a tropa ter calma e agir sempre em conjunto”, ressaltou.
Quando atravessaram o portão, segundo Santos, muitos objetos foram arremessados pelos presos em sua direção, tais como pedaços de pau e de pedra, facas e estiletes e sacos de plástico com urinas e fezes. Ainda no térreo, enquanto começavam a entrar no Pavilhão 9, Santos disse ter visto duas pessoas caídas no chão, “aparentemente mortos”. A tropa comandada por ele foi para o terceiro pavimento do pavilhão, onde foi também recebida por porretes e estiletes e seringas [que eles imaginavam estar contaminada com HIV], que eram lançados em suas direções, e por tiros. “Alguns policiais revidaram a agressão”, disse.
Houve, segundo ele, um primeiro confronto entre presos e policiais, em que policiais ficaram feridos. Em outro embate, declarou que foi ferido por um disparo de arma de fogo, um tiro que atingiu a perna esquerda. “E eu revidei”, declarou. Após ter sido baleado, Santos disse que caiu e fez mais disparos com um revólver, enquanto a sua tropa avançava. “Estava no comando. Aí caí no solo e a tropa continuou. Eu fui ficando para trás. Enquanto eu regredia, ouvi que os disparos tinham cessado e dei início à descida das escadas. Vi então que minha tropa iniciava o processo de socorrer os feridos”, relatou.
O depoimento de Santos é muito semelhante ao de dois policiais que foram ouvidos nessa quarta-feira (31). Marques, o segundo a ser ouvido ontem, era tenente da Rota na época em que o massacre ocorreu, em outubro de 1992. Ele é um dos 25 policiais acusados pela morte de 73 detentos que ocupavam o terceiro pavimento (ou segundo andar) do Pavilhão 9 da antiga Casa de Detenção do Carandiru.
Em seu depoimento, ele disse ter participado de uma reunião com oficiais da Polícia Militar, entre eles o próprio Marques, onde também estavam juizes, o diretor do Carandiru, José Ismael Pedrosa, e o coronel Ubiratan Guimarães, que comandou a operação no dia do massacre. Em depoimento, Marques disse que Pedrosa contou sobre o que estava acontecendo no Pavilhão 9 e falou da necessidade de intervenção da Polícia Militar no local. “Ouvi ele falar isso, sobre a necessidade da intervenção, ao coronel Ubiratan”, disse.
Segundo Marques, os diretores do Carandiru temiam que a rebelião no Pavilhão 9 se espalhasse para outros pavilhões do complexo penitenciário e que ocorressem muitas mortes entre os presos por causa do conflito entre duas facções que buscavam o controle do local.
A Rota então se preparou para entrar. A ideia inicial era que a tropa de elite de São Paulo fosse a última tropa a ter acesso ao Pavilhão 9. A Rota foi dividida em dois grupos: um comandado pelo então capitão Valter Alves Mendonça, que também prestou depoimento na manhã de ontem, e o outro comandado pelo capitão Ronaldo Ribeiro dos Santos, que foi réu na primeira etapa do julgamento do Massacre do Carandiru. No entanto, quando avisaram a tropa sobre a instauração de um caso de exceção no presídio, por causa dos disparos com armas de fogo feitos pelos presos, a ideia inicial foi abandonada e a Rota foi a primeira a entrar no pavilhão, equipada com metralhadoras e revólveres. Foi decidido então que o grupo comandado por Mendonça ficaria no terceiro pavimento e que a tropa comandada por Ronaldo, no segundo. Nos pavimentos superiores ficariam os policiais do Grupo de Ações Táticas Especiais (Gate) e do Comando de Operações Especiais (COE).
No terceiro pavimento, segundo ele, houve pelo menos três confrontos entre os policiais e os presos. Nos dois primeiros, ocorreram disparos. “Era tiro. Vi o clarão dos disparos”, disse, sobre o fato de os presos terem atirado. No terceiro confronto, o embate foi corpo a corpo. “Nesse momento, eu fui esfaqueado no antebraço direito”, declarou.
Pela manhã, o ex-capitão Valter Alves Mendonça foi interrogado. Em depoimento, ele disse que ao entrar no segundo andar (terceiro pavimento), viu clarões de disparos de armas de fogo vindos dos presos, ouviu estampidos e sentiu o impacto de tiros no escudo que carregava. O ex-capitão declarou ainda que participou de dois confrontos com os presos e chegou a ser ferido. “Levei pauladas e estiletadas. A paulada foi na perna e fui cortado por estiletes no braço”, disse.
Toda a ação para reprimir a rebelião no Carandiru, em 1992, resultou em 111 detentos mortos e 87 feridos. O espisódio é considerado como o maior massacre do sistema penitenciário brasileiro.