Maria Bezerra conta que o sargento Lima “botou o olho” no Miraci pela primeira vez quando foi levar um médico para tratar de um de seus cinco filhos que estava doente. Para conquistar a simpatia dos moradores e quem sabe alguma pista sobre os “terroristas”, que era como os militares definiam os guerrilheiros, o Exército tinha médicos para tratar dos camponeses.
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Mãe espera reencontrar filho raptado pelo Exército durante guerrilha do Araguaia Testemunha pode ser peça-chave para desvendar sequestro de menino feito pelo ExércitoMorte de jovem durante prova para entrar no Exército em Recife será investigadaFamília de menino raptado pelo Exército no Araguaia ficou marcada para sempreAlém da pressão, dona Maria, como todos os outros moradores da região, foi proibida pelo Exército de entrar na mata. E era de lá que ela tirava o sustento da família quebrando coco de babaçu para vender e plantando feijão e mandioca para o sustento. Até para chegar beira do Araguaia para lavar roupas e panelas tinha de pedir autorização dos militares, relata. Dona Maria acabou entregando o filho, que foi levado de helicóptero de Xambioá, nos braços do sargento Lima, que, do céu , segundo ela, balançou o menino para a mãe ver de longe. “Esse povo tem a cara dura, eles não falam com a gente alegre não, por isso eu acabei entregando o frangotinho. Eu tinha medo que eles fizessem arte comigo e que meus filhos ficassem sem mãe, porque pai eles já não tinham. E era muito medo. Cansei de ver eles pegar (sic) um revólver e botar na minha cara para eu dizer onde estava o Osvaldão. Não tinha um palmo entre a boca da arma e a minha cara. E com o dedo no gatilho. ‘Meu pai não me criou mentindo’, dizia para eles. ‘Se tivesse visto, já tinha contado. Se quiser me matar me mate, mas vou pela verdade’”, relata dona Maria. Osvaldo Orlando da Costa, ou Osvaldão, um dos principais e mais procurados guerrilheiros do Araguaia, morto em 1974. Um filho que o guerrilheiro teve com uma moradora local também foi levado.
Dona Maria não se esquece do barulho das rajadas de metralhadora, segundo ela da marca Fal (de uso exclusivo do Exército), e do tamanho das cápsulas das balas, que a população catava no chão, no dia seguinte às batalhas entre militares e guerrilheiros. “Dava quase um dedo de bala.” Para ela, o “tempo da guerra” foi um horror. Suas lembranças são de pessoas sendo “judiadas”, “tomando peia” do Exército e impedidas de sair de casa e de entrar na mata até mesmo para pegar alguma coisa para comer. “Eu vi baterem no finado Silvano, vi o João Medina todo maltratado por eles, vi o Jairo preso em um buraco, amarrado e judiado. Por que eu não ia ter medo de eles me matar? As outras tinham marido. Eu só tinha Deus para punir por mim.”
Apesar da esperança de um dia encontrar Miraci, ela acha que o filho não terá por ela “amor de mãe”. Mas sonha em conhecer o rosto dele, saber se está bem e se os olhos do menino ficaram azuis ou escureceram como os dela. “Eu tentei ficar com meu frangotinho, que era bem alvinho mesmo, mas não consegui. Não tinha inteligência para saber como eu podia reagir às coisas. Hoje seria diferente, porque sou formada, não escriturada, mas na vida. Essa é a minha história verdadeira. Se fosse no tempo de agora, seria outra.”