Pela câmera de segurança da portaria, assistimos a Eduardo Coutinho atravessar o portão gradeado e entrar com sua equipe. A liberação do acesso é a primeira imagem de Edifício Master (2002), um dos filmes que consagraram o seu estilo austero, avesso à espetacularização da realidade. Fazer do mínimo o máximo. Eis a fórmula de um cineasta que abominava fórmulas, que estava para as imagens como Graciliano Ramos para as letras. “Coutinho sempre inovava. Só ele sabia fazer o que ele fazia: seus filmes eram sempre uma revelação, uma novidade”, lembrou o diretor gaúcho Jorge Furtado.
As premissas dos filmes de Coutinho quase sempre partiam da simplicidade. “Filmar a vida do prédio durante uma semana”, anunciava, com a própria (e inconfundível) voz, na abertura de Edifício Master. Os resultados, porém, costumavam ser tão surpreendentes quanto desconcertantes: como esquecer, nesse mesmo filme, o aposentado que se debulhava em lágrimas ao cantar My way? Ou não se iludir com o embaralhamento das performances de atores e anônimos em Jogo de cena (2007)? Ou não se admirar com a coragem de o cineasta, já setentão, desembarcar no sertão à procura de histórias e assumir os problemas da busca aleatória em O fim e o princípio (2005)? Este era o jeito Coutinho de fazer filmes e de ver o mundo: amplo, generoso, por vezes contraditório, mas sempre respeitoso com a sensibilidade de quem se posicionava diante das lentes e com a inteligência dos que estavam nas poltronas.
Em obra pontuada por sucessivos acertos, as incursões do cineasta por temas sociais – da estreia tardia e assombrosa em Cabra marcado para morrer (1984) às reminiscências desencantadas de antigos metalúrgicos em Peões (2004) – e religiosos (Santo forte, outra obra-prima, vencedor do Festival de Brasília de 1999) mostraram um documentarista compromissado com o seu país.
“Não há ninguém no Brasil que possa ocupar o lugar do Coutinho. Fica o vazio. Esse era um mestre”, comentou Fernando Meirelles, diretor de Cidade de Deus, poucas horas depois de saber do assassinato do colega. Sim, Coutinho foi único na arte de narrar, mas, acima de tudo, um mestre na arte de escutar: tudo porque, antes de ligar as câmeras, ele enxergava as pessoas.
Conheça as obras-primas de Eduardo CoutinhoCabra marcado para morrer - Foto: Globo Vídeo/DivulgaçãoNo início dos anos 1960, Eduardo Coutinho planejou fazer um filme de ficção em que camponeses reencenariam a história real de João Pedro Teixeira, fundador da Liga Camponesa de Sapé (PB), assassinado a mando de latifundiários em 1962. O golpe militar de 1964 interrompeu as filmagens. Integrantes da equipe foram presos e outros fugiram da repressão. Latas de filmes acabaram escondidas debaixo da cama de um general, pai do diretor David Neves. Negativos se salvaram, enviados à Cinemateca do Museu de Arte Moderna (MAM) carioca com o título A rosa do campo. A ditadura perseguiu a família do líder paraibano – com nome falso, a mulher dele, Elizabeth Teixeira, fugiu com um dos 11 filhos para o Rio Grande do Norte, enquanto os outros tiveram de morar com parentes em vários pontos do país. Em 1984, a produção foi concluída.
Edifício Máster - Foto: Riofilme/DivulgaçãoO documentário conta histórias de vida de 37 moradores do Edifício Master, na Rua Domingos Ferreira, 125, em Copacabana
Jogo de cena - Foto: Riofilme/DivulgaçãoOitenta e três mulheres, encontradas por anúncio publicado em jornal, contaram sua vida em um estúdio. Vinte e três delas foram filmadas no Teatro Glauce Rocha, no Rio de Janeiro. Várias atrizes interpretam, a seu modo, as histórias reveladas por aquelas mulheres.