A maior parte das investigações dessas mortes acaba sendo arquivada, sob a alegação de que foram motivadas por resistência à ação policial. Em 2006, mais de 400 jovens foram mortos, durante o mês de maio, em São Paulo, em ataques atribuídos a confrontos entre membros da organização criminosa Primeiro Comando da Capital (PCC) e policiais. Em 2011, Juan Moraes, de 11 anos, morreu após ser atingido por uma bala disparada por um policial militar, em Nova Iguaçu, no Rio de Janeiro. Comum a todos esses diferentes casos, a explicação oficial das mortes: autos de resistência.
A expressão é usada nos casos em que um civil é morto por agentes do Estado.
O fim do registro de homicídios como autos de resistência é o objeto do Projeto de Lei (PL) 4.471/12, que fixa regras para a investigação de crimes que envolvem agentes do Estado, como policiais. O projeto chegou a entrar na pauta de votação nesta semana. Movimentos sociais e secretarias do governo federal manifestaram-se a favor da proposta. No entanto, devido à pressão de setores que se opõem à medida, a proposta acabou sendo retirada.
De autoria dos deputados federais Paulo Teixeira (PT-SP), Fábio Trad (PMDB-MS), Delegado Protógenes (PCdoB-SP) e Miro Teixeira (PROS-RJ), o texto do PL propõe mudanças substanciais no Código de Processo Penal. De acordo com a proposta, em casos de morte violenta, será obrigatório “exame interno, documentação fotográfica e coleta de vestígios encontrados durante o exame necroscópico”. O PL estabelece regras para a realização de exames de corpo de delito e recomenda que o exame interno seja realizado “nos casos de morte violenta ocorrida em ações com envolvimento de agentes do Estado” e que a cena do crime seja preservada e periciada.
Para a coordenadora do Movimento Mães de Maio, Débora Maria da Silva, que teve o filho de 29 anos encontrado morto com cinco tiros na periferia de Santos (SP), a mudança pode gerar a diminuição da letalidade da polícia e a garantia da vida de muitas pessoas que são alvos da criminalização e da violência policial. Ela relata que, no caso da sequência de mortes ocorrida em 2006, muitos dos jovens assassinados foram encontrados com tiros nas mãos ou na nuca, o que comprovaria que eles estavam em posição de defesa e não de ataque. “O que temos hoje é a morte decretada pelo gatilho do revólver. Na ocorrência de resistência seguida de morte, não há investigação. Os próprios policiais são testemunhas dos fatos. Essa é uma prática abusiva das autoridades, feita para matar”, destaca Débora.
Integrante do Grupo de Estudos sobre Violência e Administração de Conflitos (Gevac) do Departamento de Sociologia da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), Jacqueline Sinhoretto analisou inquéritos sobre mortes provocadas por policiais que são acompanhadas pela Ouvidoria da Polícia de São Paulo e também das prisões em flagrante, cujos dados são divulgados pela Secretaria de Segurança Pública do estado.
Dos 734 processos de mortes em decorrência da ação policial analisados, que envolveram 939 vítimas e 2.162 autores, houve registro de 501 vítimas negras e de 322 brancas. Ao todo, entre os anos de 2009 e 2011, o número de mortes de negros foi três vezes superior ao de brancos da mesma faixa etária, em situações consideradas autos de resistência. Das 817 vítimas que tiveram a idade apontada nos inquéritos, 630, isso é, 77% tinham entre 15 e 29 anos de idade. Já entre as 939 pessoas mortas que tiveram o sexo identificado, 911 eram homens.
O coordenador nacional do Plano Juventude Viva, da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir), Felipe Freitas, defende a mudança na legislação. Para ele, o fim dos autos de resistência poderia gerar mais segurança para a juventude negra e confiança nas polícias.
“Todas as atividades profissionais precisam de formas de controle social para que sejam exercidas com responsabilidade e transparência. Quando se trata de profissionais que trabalham armados, esse controle precisa ser ainda maior. A sociedade precisa conhecer quais procedimentos eles devem usar, para que, quando não usem aquele procedimento, ela possa requerer a responsabilização desses profissionais, no caso, dos policiais”, defende.
Para ex-PM, atuação da corporação é legítima
O fim do registro de homicídios como autos de resistência e a fixação de regras para a investigação de crimes que envolvem agentes do Estado encontram resistência. Ex-capitão das Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar (Rota) e vereador de São Paulo, Conte Lopes, discorda das críticas à atuação policial. “O policial que está fardado, de serviço, está agindo em legítima defesa, mas ninguém quer entender que, a priori, ele está agindo em legítima defesa. Você tem que proteger a pessoa de bem e se proteger, obviamente.
Questionado sobre o índice de jovens negros mortos pelas polícias, Conte diz que os policiais têm respondido processos por anos e defende que todas as acusações devem ter prova, “sendo negro, branco ou japonês, tudo tem que ser julgado”. Lopes, que escreveu o livro Matar ou Morrer em resposta ao Rota 66, do jornalista Caco Barcellos, em que o atual vereador foi apontado como “um dos maiores matadores da Polícia Militar de São Paulo”, defende a fixação de leis mais duras contra pessoas que praticam crimes. Para ele, a falta desse tipo de regra geraria temor na população, além do fortalecimento do crime organizado. “No meu tempo, o povo tinha segurança. Hoje os bandidos tomaram conta, matam policiais e ninguém tem segurança. Nós estamos morrendo na frente da nossa família”, destaca.
A Agência Brasil também procurou entrevistar o comandante do Batalhão de Operações Especiais (Bope), do Rio de Janeiro, para comentar as propostas de alteração e os significados dessas mudanças na formação dos agentes da segurança pública. A assessoria de imprensa da Polícia Militar do Rio de Janeiro, contudo, informou que não havia porta-voz disponível para tratar do assunto. Temido pela atuação firme e, por vezes, truculenta, o Bope tem um grito de guerra em que diz: "O interrogatório é muito fácil de fazer; pega o favelado e dá porrada até doer. O interrogatório é muito fácil de acabar; pega o favelado e dá porrada até matar. Bandido favelado não se varre com vassoura; se varre com granada, com fuzil, metralhadora”.
As mudanças no Código de Processo Penal são o objeto do Projeto de Lei (PL) 4.471/12, que fixa regras para a investigação de crimes que envolvem agentes do Estado, como policiais.
O procurador federal dos direitos do cidadão, Aurélio Rios, defende que o fim da violência policial é fundamental para garantir a segurança para toda a sociedade: “Nós vamos criando uma espiral de violência da qual não teremos mais de onde sair. Se queremos uma cultura de paz, temos que pacificar primeiramente a atuação da polícia e organizá-la dentro dos limites da lei, inclusive para protegermos os próprios policiais”. O procurador explica que, apesar de não ser estabelecido em lei, o auto de resistência começou como um procedimento informal e, aos poucos, foi introjetado em manuais das polícias, tornando-se prática comum. “Demostrou-se, com o passar do tempo, que essa prática escondia um modelo que privilegiava a impunidade de maus policiais que, sob a proteção do auto de resistência, praticavam assassinatos e, sobretudo, execução sumária”, destaca Rios.
Para reverter essa situação, em 2012 o Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana (CDDPH), ligado à Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, elaborou uma resolução que recomenda o fim do uso das expressões “auto de resistência” e “resistência seguida de morte”. “O registro do evento deve ser como de homicídio decorrente de intervenção policial e, no curso da investigação, deve-se verificar se houve ou não resistência que possa fundamentar excludente de antijuridicidade”, cita o texto, que diz que o corpo da vítima não poderá ser removido do local do episódio.
A resolução do CDDPH também pede a realização de perícias técnicas no local dos fatos e em todos os armamentos, veículos e maquinários, envolvidos em ação policial, além de outros mecanismos de investigação, como convocação de testemunhas, a realização de diligências e a instauração de processos administrativos. A norma fixa ainda que, até que os fatos sejam esclarecidos e apurados, os policiais envolvidos devem ser afastados e não participem de processo de promoção por merecimento ou por bravura, uma forma de desestimular práticas semelhantes.
Em janeiro do ano passado, a Secretaria de Segurança Pública de São Paulo seguiu os parâmetros da resolução do CDDPH e editou uma resolução determinando a mudança dos termos usados no registro da ocorrência, a fim de que os casos sejam realmente investigados. O texto também normatizou o atendimento às vítimas de confrontos com a polícia. De acordo com o documento, elas devem ser socorridas pelo Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu). Alguns dias após a edição do texto da resolução, a Polícia Civil do Rio de Janeiro também passou a adotar procedimentos semelhantes.
Para o procurador, outras medidas também podem ser tomadas para dar fim à sensação de impunidade, como valorizar o trabalho de investigação; garantir a independência dos peritos, para que tenham condições técnicas e políticas de fazer as análises; e não permitir que as investigações sejam submetidas ao mesmo comando dos policiais que atuam em ações de repressão nas ruas.
Aurélio Rios alerta, entretanto, que mudanças culturais devem ser combatidas a longo prazo. “Por mais violenta que seja a ação do chamado bandido, a polícia não está autorizada a agir como tal. Uma pessoa que foi pega roubando em flagrante tem que ser detida, investigada”, diz.
“Nós desejamos mais policiamento na rua, mais segurança, mas também mais respeito à lei e aos procedimentos policiais, sabendo que as pessoas, ainda que tenham cometido delitos, não estão desprovidas dos seus direitos, sobretudo do direito à vida”, completa..