Ao desembarcar de transatlânticos para assistir aos jogos da Copa do Mundo, os turistas vão se deparar com o abandono da infância brasileira. Nos portos das cidades-sede do Mundial de futebol, meninas seminuas vendem os corpos em troca de um prato de comida. Garotos franzinos carregam malas e vendem bugingangas para sobreviver. Jovens moradores de rua fumam crack à beira-mar para tentar fugir da rotina de desamparo e de desespero. O governo modernizou a estrutura das regiões portuárias, mas não conseguiu acabar com a violação dos direitos das crianças nessas áreas. Os terminais marítimos e fluviais de todo o Brasil são pontos para a exploração sexual de adolescentes, o trabalho infantil e o uso de drogas.
A equipe do Estado de Minas viajou 8 mil quilômetros e visitou quatro capitais para conhecer a realidade de quem vive em áreas onde o crescimento econômico nem sempre é sinônimo de avanço social. A partir de hoje, o EM publica a série de reportagens Cais do abandono, que mostrará os principais abusos sofridos por crianças e adolescentes em regiões portuárias.
O governo federal estima em R$ 33 bilhões os investimentos em infraestrutura realizados para a Copa do Mundo em todas as cidades-sede. Já o repasse para o combate à exploração sexual infantil no ano passado ficou em R$ 1,3 milhão – o equivalente a 0,03% da despesa total em obras.
Em Manaus, nos fins de semana, casas de palafitas vizinhas ao porto transformam-se em bares, onde garotas consomem drogas e vendem sexo a R$ 10. Homens buscam meninas em jet skis para levá-las aos pontos de exploração. Barcos proibidos de circular por falta de documentação são usados como motéis, para onde são levadas as meninas aliciadas. "Por conta da Copa do Mundo, a fiscalização fluvial intensificou-se. Tem dezenas de barcos ancorados, sem poder navegar, mas em vez de resolver o problema, os donos transformaram em motel, cobrando R$ 40 por hora", afirma Clodoaldo Santos, conselheiro tutelar de Manaus.
A desigualdade é nítida também no Porto de Salvador. O centro histórico, vizinho ao terminal de embarque e desembarque, é a primeira parada dos turistas. Crianças espalham-se pela área do Mercado Modelo para atrair a atenção dos visitantes endinheirados. Nadam no mar, próximo à entrada do comércio, à espera de estrangeiros dispostos a atirar moedas. Instruídos por guias ou conquistados por gritos que pedem money, do alto da rampa, turistas se divertem com a disputa dos meninos pela esmola lançada ao mar. A postos, garotos usam frágeis máscaras de mergulho para enxergar as moedas no fundo da água. Não raramente, crianças cortam-se nas hélices dos barcos aportados. "Venho desde os 5 anos. Se a gente junta cinco dólares, os comerciantes pagam até R$ 14", relata Duro, de 16 anos, que ganhou esse apelido por ser valente.
REAÇÃO TARDIA
Entidades de defesa dos direitos da infância chamam a atenção para o abismo entre os valores destinados a obras e os alocados para a proteção de meninos e meninas expostos a diversas violações. "Problemas graves como a exploração existem no Brasil, sem a Copa do Mundo. Megaeventos, porém, aumentam os fatores de vulnerabilidade e expõem as crianças e adolescentes a novos riscos", explica a coordenadora de programas da Childhood Brasil, Anna Flora Werneck.
A socióloga e especialista em políticas públicas para a infância Graça Gadelha percorreu todas as cidades-sede da Copa e conhece de perto a realidade dessas regiões. Reconhece que existe um esforço do governo para combater a exploração sexual, mas critica a demora para o início das ações. "O país foi escolhido como sede da Copa em 2007, mas somente em 2012 o governo começou a elaborar a agenda de convergência. Foi uma decisão tardia, mas pelo menos representa um esforço para criar um mínimo de planejamento", comenta a especialista.
Estratégia para grandes eventos
Cerca de 600 mil turistas estrangeiros e 3 milhões de viajantes nacionais devem circular pelas cidades-sede durante a Copa, de acordo com a Embratur. Mais do que lembranças dos jogos e da cultura local, parte dos visitantes pretende levar para casa vestígios da dignidade de crianças e adolescentes, que se oferecem como artigo de diversão ou força de trabalho em troca de algum dinheiro.
No governo federal, a mobilização para implantar uma rede de proteção à infância durante os megaeventos começou em agosto de 2012, com a criação do Comitê Nacional para a Proteção dos Direitos da Criança e do Adolescente nos Grandes Eventos. O colegiado reúne representantes da sociedade civil, de organismos internacionais, de empresas e do governo. Também saíram do papel os comitês locais, para diagnosticar as violações mais recorrentes e a situação da rede montada para combatê-las. O combate ao trabalho infantil e à exploração sexual são alguns dos principais focos.
A secretária Nacional de Promoção dos Direitos da Criança e do Adolescente da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, Angélica Goulart, explica que a estratégia para os grandes eventos inclui a realização de plantões de equipes com profissionais de várias áreas, criação de espaços temporários de acolhimento e a formação de equipes itinerantes.