O livro foi a maneira encontrada por Tarsilinha para tornar público o insight que a acompanha há alguns anos: que o quadro mais famoso de sua tia - e um dos mais importantes da arte brasileira - foi, na verdade, um autorretrato de Tarsila, possivelmente nua, em frente a um espelho, feito para impressionar sua grande paixão, na época, o escritor Oswald de Andrade.
Foi por sugestão de uma amiga que Tarsilinha aventou essa hipótese pela primeira vez. Em 2011, resolveu fazer um inusitado teste - para "tirar a prova" de tal versão. Ela lançou a possibilidade de que o quadro fosse a reprodução de uma imagem refletida num espelho, um espelho que estivesse levemente inclinado, criando a deformação que caracteriza a obra.
Aproveitando-se da semelhança física com a tia-avó ilustre, Tarsilinha posou para um espelho inclinado - de forma similar à foto que aparece nesta página. "Ou seja, procurei imitar a provável pose que a artista teria assumido quando pensava no quadro que faria, naquele longínquo dia de 1928", diz ela, em trecho do livro. "A mágica se completou: a imagem que vi no espelho lembrava de maneira impressionante a figura do Abaporu, como se de repente tivéssemos nos deslocado no tempo e no espaço e, por um encantamento, encontrássemos a resposta de um enigma, uma chave nova para compreender uma obra por si tão cheia de mistério."
Tarsilinha recorreu a fotos e memórias de família para comprovar ainda mais fortemente sua interpretação.
"Outra semelhança entre a pintura e a pintora está no pé. Assim como o Abaporu, familiares acreditam que Tarsila também tinha o segundo pododáctilo maior do que o primeiro, o hálux", conta Tarsilinha. "Este detalhe anatômico teria sido percebido, na infância, por uma das sobrinhas-netas da pintora, Marília Estanislau do Amaral Powers - ela própria também dotada dessa característica, o que, por ser hereditária, só reforça a tese. Irmão de Tarsila, Milton Estanislau do Amaral, era outro da família que tinha os dedos dos pés assim."
Ciente da importância de Abaporu para a arte brasileira, bem como da potência das interpretações consagradas acerca do significado do quadro, Tarsilinha não pretende que essa sua conclusão se sobreponha ao sentido mais amplo e metafórico que a tela atingiu. "Com este livro, não quero mudar a brilhante ideia que Oswald de Andrade teve ao achar que o Abaporu era o homem plantado na terra. O importante é que fique também clara a inspiração da obra, a perspicácia de Tarsila do Amaral - sua capacidade de transformar uma cena do cotidiano, do acaso, no mais famoso quadro brasileiro de todos os tempos." Ou seja: ela lança um novo olhar à obra da tia-avó e reconhece que, para artistas geniais, a simplicidade do cotidiano é o bastante para impulsionar a criação..