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Estado de Minas

Rapaz que ajudou a queimar um índio, em Brasília, está prestes a ser policial

Gutemberg era adolescente quando participou, com mais quatro amigos, do assassinato do índio Galdino, num dos crimes que mais chocou o país


postado em 28/05/2014 17:01 / atualizado em 28/05/2014 17:10

Adolescente foi condenado em 1997 a quatro meses de medida sócioeducativa e ficou com a ficha limpa(foto: Ronaldo de Oliveira/CB/D.A Press)
Adolescente foi condenado em 1997 a quatro meses de medida sócioeducativa e ficou com a ficha limpa (foto: Ronaldo de Oliveira/CB/D.A Press)

O Tribunal de Justiça de Brasília não definiu, ainda, a data para julgar o mérito de um caso que está gerando polêmica no Brasil por mexer com a confiança das autoridades e com a Constituição Federal. Trata-se de uma liminar que concedeu o direito a Gutemberg Nader Almeida Junior de frequentar o curso de formação para ser agente de Polícia Civil do Distrito Federal. Gutemberg hoje tem 34 anos, mas ele foi condenado, em 1997, por ter participado, com mais quatro amigos, de um um crime que chocou o país, ao queimar o índio Galdino dos Santos, que dormia em um ponto de ônibus, no centro da capital federal. Na época, Gutemberg tinha 17 anos e a vítima teve 95% do corpo queimado e morreu na parada, onde tinha resolvido passar a noite depois de perder a condução para voltar para casa.

Gutemberg é formado em direito e mora num condomínio de classe média alta em Brasília. Ele recebeu a liminar para continuar realizando as provas, segundo o Tribunal de Justiça e pode passar a receber até R$ 7,5 mil, mas o caso levanta questões sobre o legal e o moral. Como era menor, em 1997, Gutemberg cumpriu uma medida socioeducativa de quatro meses e depois ficou com a ficha completamente limpa, não podendo ser discriminado ou passar por preconceito.

Gutemberg hoje tem 34 anos, é formado em direito e mora num condomínio de classe média alta na capital. Ele conseguiu refazer a vida, ao menos aparentemente.(foto: Reprodução da TV Record)
Gutemberg hoje tem 34 anos, é formado em direito e mora num condomínio de classe média alta na capital. Ele conseguiu refazer a vida, ao menos aparentemente. (foto: Reprodução da TV Record)
O nome de Gutemberg constava como aprovado em todas as fases do concurso público — iniciado no ano passado. Ele foi considerado apto depois de passar em provas objetivas, discursivas, de capacidade física e exames biométricos e psicológico. Na última relação divulgada no dia 24, pelo Centro de Seleção e de Promoção de Eventos, o nome não aparecia mais como futuro agende da Polícia Civil do Distrito Federal por haver sido barrado no critério "vida pregressa". Mas a liminar do Tribunal permitiu que ele continuasse as provas.

As análises que tiraram Gutemberg da lista de aprovados são defendidas pelo jurista e especialista em direito penal Luiz Flávio Gomes, juiz aposentado. Ele ressalta a importância de ter avaliações de vida pregressa e social em concursos como o da polícia. “As regras dos editais já preveem esse tipo de investigação, que não é só de antecedentes criminais, mas de comportamento social. Tem gente que nunca cometeu um crime, mas não pode ocupar a área de segurança ou o cargo de juiz ou promotor pela vida que leva na sociedade”, detalha. O ex-magistrado explica que, quando um adolescente comete um ato infracional e cumpre medida socioeducativa, fica sem qualquer antecedente. Diferentemente de um adulto, que, mesmo depois de ficar preso, ainda precisa de dois anos sem praticar qualquer delito para ter a certidão de nada consta. “Mas uma coisa é a lei, outra é o que o povo quer. E o povo quer vingança eterna, quer que seja punido eternamente. Aí teríamos que mudar a Constituição”, complementa Gomes.

Os argumentos favoráveis a Gutemberg, no entanto, têm sido mais fortes. Advogado especialista em concursos públicos e diretor jurídico da Associação Nacional de Apoio e Proteção aos Concursos (Anpac), Leonardo de Carvalho acredita que Gutemberg conseguirá assumir o cargo. “Juridicamente, não vejo impedimento. Há uma série de jurisprudências favoráveis a ele. O próprio governo estimula que a iniciativa privada dê emprego a ex-condenados, e o Estado mesmo não vai dar? Quer dizer que eu posso oferecer esse trabalho e o Estado não?”, questiona o defensor. Na visão de Carvalho, desclassificar alguém por delito com pena já cumprida é ferir a lei. “Não existe punição perpétua. Depois que pagou pela pena, o indivídulo deve ser reintegrado à sociedade”, complementa.

O promotor de Justiça da Promotoria de Defesa da Infância e da Juventude do Ministério Público do DF e Territórios (MDFT) Pedro Oto de Quadros defende que, se uma infração cometida por um menor de idade for levada em consideração na vida adulta, há claramente um descaso do Estado com os direitos da criança e do adolescente. “A administração pública e a Polícia Civil — que é órgão público — só podem fazer o que a lei determina. Antecedentes de um adolescente não podem ser levados em conta após o cumprimento da medida e da vida adulta”, garante. “Ele tem o direito de buscar o motivo de ter sido reprovado. Se for por conta da infração, isso é um absurdo”, acrescenta Oto. Mais uma vez, a reportagem tentou localizar G. ou algum advogado dele, mas não conseguiu contato.

Ìndio Galdino morreu 20 horas depois de ter corpo queimado. Na época, os acusados disseram que queriam dar um susto nele e imaginavam que fosse um mendigo(foto: Ronaldo de Oliveira/CB/D.A Press)
Ìndio Galdino morreu 20 horas depois de ter corpo queimado. Na época, os acusados disseram que queriam dar um susto nele e imaginavam que fosse um mendigo (foto: Ronaldo de Oliveira/CB/D.A Press)
O outro lado: a crueldade

Galdino Jesus dos Santos teve o corpo incendiado enquanto dormia em um ponto de ônibus na Entrequadra 703/704 Sul, em 20 de abril de 1997. Gutemberg, na época, era o único adolescente entre os cinco jovens que atearam fogo ao índio, que morreu aos 44 anos. À época, então idenfificado como "G", estava com Max Rogério Alves, 19, Tomas Oliveira Almeida, 18, Eron Chaves Oliveira, 19, Antônio Novély Vilanova, 19. Os quatro jovens maiores de idade foram denunciados à Justiça por homicídio triplamente qualificado, com pena de 12 a 30 anos de prisão, por motivo fútil, sem chance de defesa à vítima e requintes de crueldade.
O crime foi julgado em novembro de 2001. Eles foram condenados a 14 anos de prisão. G, hoje é Gutemberg e pode ser um polícial

A crise de confiança
» CIRO DE FREITAS

“Eu lamento muito a possibilidade de que ele possa ingressar nas fileiras da Polícia Civil do DF. A legislação o contempla, tanto que ele pode conseguir continuar no concurso por decisão judicial. No entanto, se ele, de fato, virar policial será muito observado e vigiado pelos colegas por conta do ato que ele praticou no passado. Isso é evidente. Será ruim para a corporação e para ele mesmo na condição de policial. Tem de ficar claro que o que ele fez, ainda que tenha sido quando adolescente, não foi uma coisa qualquer. Ele participou de um crime hediondo e isso ficou mais do que comprovado. Para virar policial civil, a pessoa precisaria ter um passado inteiro limpo, sem qualquer tipo de mácula ou nódoa, afinal, o cidadão não vai exercer uma atividade qualquer. Eu penso que a legislação tem que ser modificada quanto a isso. Mas a lei precisa mudar também em relação à maioridade penal, e que a pessoa possa, a partir de uma certa idade, ser penalizada na mesma proporção do ato praticado.”

Presidente do Sindicato dos Policiais Civis do DF (Sinpol)

A vingança eterna
» LUIZ FLÁVIO GOMES

“Quando um menor de idade pratica um ato infracional e cumpre medida socioeducativa, não tem mais ficha, limpa ou suja. O adulto, dois anos depois de ter cumprido toda a pena, também consegue a ficha limpa. Eles são cidadãos, completamente regenerados, e têm que ser respeitados, sem discriminação em qualquer área. A investigação de vida pregressa e análise social para a entrada em concursos públicos são muito importantes, sim, desde que a análise não seja feita baseada em crimes que já foram pagos pelos infratores. Claro que não é qualquer pessoa que pode e deve assumir um cargo público. Isso está previsto nos editais. É preciso cumprir uma série de exigências, principalmente para funções como policial, juiz ou promotor. Mas a pessoa não pode ficar marcada por algo que fez há muitos anos e ser discriminada por isso.”

Luiz Flávio Gomes, jurista e especialista em direito penal


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