Os dois tiveram que se apresentar na sede da Delegacia de Ordem Política e Social (Dops), às 15h de 27 de maio de 1974, no Rio de Janeiro, para explicar detalhes que incomodaram os censores a respeito do álbum Krig-Há, Bandolo!, lançado no ano anterior e que foi o primeiro solo de Raul. O disco tem as primeiras parcerias do cantor com Paulo Coelho. Os dois se conheceram em maio de 1972, após Raul ler um artigo do escritor na revista A Pomba, especializada em ufologia.
“Eles se apresentaram sem advogado, pois acreditavam que essa seria mais uma intimação para discutir a liberação de canções censuradas, fato já ocorrido anteriormente”, assinala o relatório. O texto da CNV afirma que Raul foi liberado 30 minutos após o depoimento, mas que Paulo Coelho ficou três horas em uma cela do Dops. “O policial encarregado do interrogatório questionou o conteúdo do gibi encartado no LP, de autoria do escritor, com desenhos de sua então namorada, Adalgisa Eliana Rios de Magalhães, 28 anos, estudante de arquitetura. Tratava-se de uma história em quadrinhos com quatro páginas inspirada nas aventuras de Tarzan, personagem criado por Edgar Rice Burroughs.”
O interrogatório foi interrompido e um camburão, com quatro policiais armados, foi prender Adalgisa.
Segundo os documentos pesquisados pelos integrantes da CNV, os interrogatórios foram individuais e duraram várias horas. Os dois não foram torturados nas dependências do Dops. Os policiais queriam informações sobre brasileiros exilados no Chile. O advogado contratado pela família de Paulo Coelho foi informado no Dops que o escritor seria liberado ainda no 28 de agosto. Às 22h, o casal assinou o alvará de soltura.
Quando iam embora, porém, quatro automóveis fecharam o táxi em que estavam e homens sem identificação forçaram o casal a sair do carro. “Os dois foram algemados, encapuzados e forçados a entrar separadamente nos carros. A partir desse momento, eles não eram mais considerados oficialmente presos sob a responsabilidade do Estado”, informa o relatório da CNV. Ao procurar notícias do filho no Dops, o pai de Paulo Coelho escutou: “Solto ele foi. Se seu filho não chegou em casa, vai ver que entrou na clandestinidade”.
SEM BARBA E BIGODE Os pesquisadores da CNV tiveram acesso a documentos do órgão de segurança que comprovam que o casal foi conduzido ao 1º Batalhão de Polícia do Exército, na Rua Barão de Mesquita, no Bairro Tijuca, no Rio de Janeiro. “O compositor foi interrogado entre 23h de 14 de junho e 4h do dia seguinte. Ao contrário da ficha do Dops, quando fotografado com bigode e cavanhaque, Paulo Coelho é identificado como tendo barba e bigode ‘aparados’. Ou seja, a data do inquérito do compositor e de sua namorada no DOI-Codi (14 e 15 de junho) não corresponde ao dia em que foram presos e sequestrados (27 e 28 de maio)”, detalha o relatório da CNV.
Os documentos do Exército não especificam quanto tempo o casal ficou preso no quartel. Na biografia de Paulo Coelho escrita por Fernando Morais (O Mago – A extraordinária história de Paulo Coelho), é citado um diário em que ele atesta estar em casa no dia 31 de maio.
No depoimento de cinco horas que prestou no Exército, Paulo Coelho detalhou sua parceria com Raul Seixas e tentou explicar sobre a Sociedade Alternativa: “Que o depoente e Raul Seixas resolveram fundar a Sociedade Alternativa, a qual foi registrada em cartório para evitar falsas interpretações; que o depoente e Raul Seixas estiveram em Brasília e expuseram os preceitos da Sociedade Alternativa aos chefes da Polícia Federal e da censura, que colocaram que a intenção não era ir contra o governo, mas, inclusive, interessar a juventude num outro tipo de atividade”.
Sobre Adalgisa, o relatório da CNV revela que ela foi submetida a dois interrogatórios e que foi identificada como militante do PCdoB e da Ação Popular (AP) e que esteve presente em reuniões, grupos de estudo sobre marxismo, assembleias, congressos e eventos como a Passeata dos 100 mil, em protesto pela morte do estudante Edson Luís, a invasão da Faculdade de Medicina na Urca e a invasão do restaurante da Faculdade de Arquitetura.
GRITO DE TARZAN Sobre o gibi anexado ao álbum Krig-Há, Bandolo! e a fundação da Sociedade Alternativa, Adalgisa disse, segundo transcrição do depoimento: “Que foi criada a Sociedade Alternativa, onde a ideia era não ser contra ou a favor de nada, e, sim, propor uma outra solução, alternativa, neutra, que chamasse a atenção; que o nome do folheto (o mesmo da capa do disco) surgiu num momento de euforia de Paulo Coelho que, lendo a revista Tarzan, subiu numa mesa imitando-o e proferiu “Krig-Há, Bandolo!”, nome imediatamente aceito pelos demais presentes”.
O namoro dos dois, entretanto, terminou após o episódio. “Paulo Coelho foi torturado na ‘geladeira’, cela mantida em baixa temperatura em que o preso permanecia nu. O medo de sofrer novas torturas físicas fez com que o compositor não respondesse ao pedido de ajuda da namorada. O ato de covardia na carceragem foi o motivo pelo qual Adalgisa Rios rompeu o relacionamento com Paulo Coelho”, destaca o relatório da CNV.
Filosofia
O lema “Faz o que tu queres, há de ser tudo da lei” deriva da filosofia do britânico Aleister Crowley, cuja obra influenciou Raul Seixas e Paulo Coelho. As primeiras manifestações surgiram durante a turnê do disco Krig-Há, Bandolo, em que os shows eram uma ode à Sociedade Alternativa.
MEMÓRIA
De exilado a patrimônio nacional
Eu fui expulso para Nova York. Fiquei um ano exilado do Brasil, sem poder voltar. Eu fui pego na pista do Aterro (do Flamengo, no Rio) quando eu voltava de um show. Um carro do Dops barrou o meu táxi e eu fiquei nu com uma carapuça preta na cabeça. Fui para um lugar, se não me engano, Realengo. Eu sinto que foi por ali, Realengo. Um lugar subterrâneo, que tinha limo. Eu tateava as paredes e tinha limo.
E vinham cinco caras me interrogar. Tinha um bonzinho, um outro bruto que me dava murro, um que dava choque elétrico em lugares particulares e tudo. Eu fiquei três dias lá. Sabe, cada um tinha uma personalidade. Era uma tortura de personalidade. Eu não sabia quem vinha. Só sentia pelos passos. Eu pensava, era o cara que batia. Era o cara que tem o...
Após três dias, eu estava no aeroporto. Já tinha deixado o LP Gita gravado e não sabia que ia fazer sucesso sozinho. Não sabia que ia estourar. E ele estourou. Acho que tocou umas seis faixas. Uma por uma. Gita, Sociedade Alternativa, Medo da chuva... Foi um disco que foi muito explorado. Então, eu estava lá nos Estados Unidos. Já tinha encontrado com John Lennon, já tinha corrido o país, era casado com uma americana na época. E tinha cantado com Jerry Lee Lewis em Memphis, Tennessee. Ele me acompanhou de piano.
Tinha transado (feito muitas coisas) um bocado nos EUA quando veio o Consulado brasileiro no meu apartamento. Era quase em dezembro de 1974. Bateu na porta do meu apartamento dizendo que eu já podia voltar. Que o Brasil já me chamava, que eu era patrimônio nacional e que estava vendendo disco. Cinicamente, o cara falou assim.
É, eu voltei. Tava com muita saudade. Voltei para o Brasil e vi o disco Gita estourado aqui. E foi mais ou menos assim aquele ano de 1974. Mas tudo bem. Eu me refiz, graças a Deus, não fiquei com trauma psicológico nenhum e acho que as coisas se processam dessa maneira.”.