O Supremo Tribunal Federal (STF) derrubou ontem, por 9 a 0, a exigência de autorização prévia para a publicação de biografias no país. A decisão, que contraria interesse de um grupo de artistas, capitaneados pelo cantor Roberto Carlos, pode trazer a público livros que foram lançados e recolhidos às pressas, histórias que só puderam ser contadas com trechos suprimidos e edições que nem chegaram às livrarias. “A Suprema Corte acabou hoje com esse entulho autoritário da censura prévia. Meu livro voltará. E será atualizado”, comemorou o historiador Paulo Cesar de Araújo, autor de Roberto Carlos em detalhes, o caso mais célebre de divergências entre biógrafo e biografado. “Daqui pra frente, tudo vai ser diferente”, disse Araújo, reproduzindo o título de uma das músicas do Rei.
Com a decisão de ontem, os ministros consideraram inconstitucional a aplicação para livros biográficos de dois artigos do Código Civil. Havia entendimentos de que, sem a autorização prévia do retratado ou de seus familiares (caso o biografado tenha morrido), as obras com fins comerciais podiam ser proibidas.
O voto da ministra Cármen Lúcia foi detalhado em 120 páginas, mas ela leu uma versão reduzida do texto por cerca de 30 minutos. Antes dela, advogados defensores dos biografados que desejam vetar as biografias sem autorização e defensores da liberdade ampla de expressão para os escritores se manifestaram no plenário do STF.
O segundo a falar foi o ministro Luís Roberto Barroso, que acompanhou o voto da relatora. “Liberdade de expressão é garantia de democracia”, disse ele. Barroso citou vários exemplos de biografias proibidas, além da de Roberto Carlos, como as de Garrincha (Estrela solitária, de Ruy Castro) e do lutador de MMA Anderson Silva (Anderson Spider Silva, de Eduardo Ohata), esta última retirada das prateleiras devido a reclamações de um ex-treinador. “Os dispositivos, se interpretados inadequadamente, como já foram, produziriam consequências concretas nefastas para a cultura, história e mercado editorial”, entendeu Barroso.
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O ministro Dias Toffoli lembrou que as pessoas eventualmente ofendidas podem recorrer ao Judiciário. Quem também fez ressalvas foi o ministro Gilmar Mendes. Ele questionou o trecho do voto de Cármen Lúcia em que ela apontava apenas a reparação econômica como forma de sanção. Mendes destacou ser necessária a retenção de exemplares e Cármen Lúcia decidiu retirar essa parte de seu voto.
O Instituto Amigo, do cantor Roberto Carlos, foi representado pelo advogado Antonio Carlos de Almeida Castro, o Kakay. O instituto, segundo o advogado, não considera necessária a autorização prévia, mas defendeu a possibilidade de retirar o que for considerado incorreto em outras edições. “Não é direito a reparação apenas, mas é necessário ter uma tutela específica para que na próxima edição não saia”, afirmou Kakay.
O advogado da Anel, Gustavo Binenbojm, defendeu que a autorização prévia se converte na prática em poder de veto, o que tem um efeito equiparável à censura. “Ninguém precisa de autorização para ser livre”, diz Binenbojm no plenário do STF. Ele ainda afirmou que a exigência da autorização prévia para as biografias criaria um monopólio de biografias autorizadas, que representam apenas a visão do protagonista.
Fera ferida
O cantor Roberto Carlos conseguiu retirar de circulação a biografia Roberto Carlos em detalhes (Editora Planeta) que o jornalista e historiador Paulo César de Araújo escreveu sobre sua vida, em 2007. Os advogados do Rei se basearam nos artigos 20 e 21 do Código Civil para fundamentar a ação. Na queixa-crime, Roberto Carlos reclamou de 14 trechos, incluindo os relatos do acidente que o fez perder a perna e da morte de Maria Rita. Quatro anos depois, os editores se uniram para criar a Associação Nacional de Editores de Livros (Anel) e levaram a questão ao STF, que apreciou a ação ontem. Em 2013, artistas liderados por Roberto Carlos e com nomes de peso, como Gilberto Gil, Caetano Veloso, Milton Nascimento e Djavan, formalizaram um grupo, chamado de Procure Saber e comandado pela empresária e ex-mulher de Caetano, Paula Lavigne. Roberto Carlos deixou o grupo por divergências e criou o Instituto Amigo, que defendeu seus interesses no STF.
Lançamentos à vista
A decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) pode encerrar uma temporada de cautela das editoras, que começou em 2007, quando o livro Roberto Carlos em detalhes foi retirado das prateleiras após decisão judicial. O fato de juízes acolherem o argumento para vetar livros criou “uma jurisprudência que se cristalizou como norma”, na avaliação do editor Roberto Feith, que é criador da Associação Nacional de Editores de Livros (Anel). Feith acredita que biografias não autorizadas devem proliferar. “Com certeza aparecerão autores que relutavam em se dedicar a livro que pudesse ser vetado”, diz. A polêmica afetou também biografias de Manuel Bandeira, Guimarães Rosa, Paulo Leminski, Raul Seixas, Geraldo Vandré e até Lily Safra, viúva do banqueiro Edmond Safra.
Na dúvida, editoras preferiam consultar biografados e familiares, e muitos projetos eram engavetados sem nem chegarem à Justiça. Paulo Leminski, o bandido que sabia latim, de Toninho Vaz, que teve a quarta edição rejeitada pelas herdeiras do poeta.
O jornalista Mário Magalhães, autor de Marighella – O guerrilheiro que incendiou o mundo (Companhia das Letras) foi um dos escritores que comemoraram o fim do consentimento prévio dos biografados. “Os 9 a 0 no STF contra a censura são o 7 a 1 do obscurantismo. Histórico! Tim-tim”, escreveu ele em sua conta no Twitter.
Já o jornalista Lira Neto escreveu em seu perfil no Facebook que prevaleceu o bom-senso e a democracia na decisão do STF. “O que pouca gente percebeu, em toda esta novela e discussão, é que não apenas o gênero biográfico estava sob inadmissível ameaça. Afinal de contas, o famigerado artigo 20 do Código Civil não restringia, textualmente, a proibição e a censura apenas às biografias não autorizadas”, destacou o autor das biografias do escritor José de Alencar, da cantora Maysa e do ex-presidente Getúlio Vargas. Lira Neto pontuou que até então, qualquer publicação, desde uma tese acadêmica até um livro, que fosse colocado à venda poderia ser enquadrado no “obscurantismo” da exigência da autorização prévia.
O que disseram os ministros
“Cala a boca já morreu. É a Constituição do Brasil que garante”
Cármen Lúcia,relatora da ação
“Quem desejar afastar a liberdade de expressão é que tem que explicar suas razões”
Luís Roberto Barroso
“A autorização prévia constitui uma forma de censura prévia que é incompatível com nosso Estado de direito”
Rosa Weber
“Por que uma pessoa que participa de um reality show pode alegar em termos de privacidade, se ela permite inclusive que seja filmada dormindo?”
Luiz Fux
“Este dispositivo que estamos a julgar não está dando nenhum tipo de autorização plena ao uso da imagem das pessoas, ao uso da vida privada das pessoas de uma maneira absoluta, por quem quer que seja”
Dias Toffoli
“Haverá casos em que certamente poderá haver justificativa até mesmo de decisão judicial que suste uma publicação. Isso se houver justificativa. Mas não nos cabe aqui tomar essa decisão a priori”
Gilmar Mendes
“Biografia, independente ou não de autorização, é memória do país”
Marco Aurélio Mello
“Não é possível que destruamos livros. Todos têm direito absoluto de expressar sua opinião”
Celso de Mello
“Sessão é histórica. A Corte hoje reafirma a mais plena liberdade de expressão artística, científica e literária desde que não se ofendam outros direitos constitucionais dos biografados”
Ricardo Lewandowski,presidente do STF