Jornal Estado de Minas

Dez anos depois do acidente do avião da Gol na Amazônia, famílias ainda sofrem


Cinquenta e quatro dias. Esse foi o tempo que durou a angústia de Creusa Paixão Lopes, 67 anos. “Vivi o mês, as semanas, os dias, as horas, os minutos, os segundos. Tudo o que eu queria era que encontrassem nem que fosse uma célula dele para poder ficar serena e viver o meu luto em paz.” Aos 29 anos, o filho de Creusa, Marcelo Paixão Lopes, morreu no acidente do voo 1907, em 29 de setembro de 2006. O Boeing 737, da companhia aérea Gol, colidiu no ar com o Jato Legacy-600, da Embraer, e caiu na floresta Amazônica, próximo à cidade de Peixoto de Azevedo (MT), tirando a vida de 154 pessoas, entre passageiros e tripulantes. Dez anos depois, parentes e amigos não se esquecem da dor e a esperança é de que algo tenha ficado como lição para que outras tragédias sejam evitadas.



O corpo de Marcelo Paixão foi o último a ser identificado por meio de DNA colhido no osso. O jovem bancário não tomaria aquele voo. A previsão era de ficar em Manaus mais uma semana para concluir um trabalho.

De última hora, resolveu vir a Brasília para participar com a família de um jantar beneficente. Do aeroporto, ligou para a mãe dizendo que avisaria assim que chegasse. Sem assistir à televisão ou ver notícias durante o dia, Creusa estranhou quando a noite chegou e ainda não havia recebido o telefonema. “Meu marido ligou para o aeroporto e viu que estava todo mundo muito nervoso. Ligamos a televisão e o chão saiu dos meus pés. A partir daí, começou a minha agonia”, conta a dona de casa.

A primeira reação foi a descrença. Mesmo com a confirmação da Força Aérea Brasileira (FAB) de que não havia sobreviventes, o sentimento comum entre os parentes era de que alguém poderia estar vivo.
Esperança destruída a cada identificação de corpo. Apesar do tempo, Creusa e o marido, João Lopes da Cruz, lembram-se da tragédia não só em 29 de setembro, mas em todos os dias 29, de todos os meses. Para relembrar a data e homenagear as vítimas, a família lançará, na terça-feira, um livro em que conta a história vivida na última década. “A vida não foi mais a mesma. Falta uma coisa. A gente caminha porque precisa viver, mas não tem como tirar isso lá de dentro nunca mais”, lamenta Creusa.



O corpo de Valdomiro Henrique Machado, com 61 anos à época, também foi um dos últimos a serem identificados. Por 14 dias, Neusa Felipetto Machado esperou a confirmação de que o marido tinha realmente morrido naquele voo. A psicóloga comenta que, mesmo diante de todos os fatos e da gravidade do acidente, ela acreditava que ele poderia estar vivo.
“Pensava até que ele poderia estar lá, no meio dos índios, contando piada para eles. Ele adorava contar piada.” Neusa se emociona ao lembrar que reconheceu o corpo de Machado pelos pés. Durante os 34 anos de casamento, eles brincavam um com o outro por causa do formato dos pés de cada um.

Buscas se estenderam por mais de 50 dias


Desde as primeiras notícias, na noite daquela sexta-feira, 29 de setembro, as famílias conseguiam poucas informações sobre o acidente, as causas, os possíveis sobreviventes e a condição dos corpos. A companhia aérea Gol ofereceu suporte de transporte e hospedagem em um hotel em Brasília para concentrar os parentes em um só local, mas, segundo várias famílias, eles passavam os dias e as horas ali à espera de notícias que só conseguiam por meio da imprensa.

Salma Assad, tia de Átila Assad, conta que, no domingo, a falta de notícias ficou ainda pior, porque era dia de eleição e o noticiário se dividia entre a votação e o acidente. O sobrinho de 24 anos, que estudava medicina na Universidade Federal do Amazonas, entrou no voo 1907 para votar na cidade natal, Rubiataba (GO). Por causa de greves, a universidade estava em férias naquele período e a mãe, Mariana Assad, o esperava em casa assando um pernil. O corpo de Átila foi um dos primeiros a serem identificados.

Na noite do domingo, os parentes que estavam no hotel ficaram sabendo que a então diretora da Agência Nacional de Aviação Civil (Anac), Denise Abreu, daria uma coletiva de imprensa no aeroporto. Revoltadas, mais de 30 famílias foram ao local exigir notícias. “Tudo o que a gente queria era saber o que estava acontecendo. Quando perguntamos sobre o resgate dos corpos, com um despreparo inacreditável, ela falou: Vocês são inteligentes, o avião caiu de 11 mil metros de altura, o que vocês esperavam? Corpos?”, conta Neusa.
Menos de um ano depois, em meio ao maior caos aéreo vivido no país, a diretora da Anac foi exonerada.



A indignação fez com que as famílias brigassem para que os corpos, mesmo que mutilados, fossem resgatados. Cinco dias depois, os primeiros cadáveres chegaram ao Instituto Médico Legal de Brasília. Até a quarta-feira, 11, a FAB já havia recuperado 145 corpos do meio da selva e 113 tinham sido identificados por peritos. Por mais de 50 dias, militares fizeram buscas na floresta. Todo o sofrimento e a demora no processo fez com que as famílias se unissem. Em novembro daquele ano, foi criada a Associação de Familiares e Amigos das Vítimas do Voo 1907, que intermediou acordos com a companhia aérea e entrou com as ações judiciais para garantir que os culpados fossem punidos.

Acordo


A maioria das famílias assinou um acordo com a Gol e recebeu indenizações, que variaram de R$ 100 mil a R$ 1 milhão. A estimativa nesses casos é feita com base nos danos materiais — quanto a vítima receberia de salário ao longo da vida e a existência de dependentes — e os danos morais. Uma das únicas que não aceitaram o acordo, a diretora da associação Rosane Gutajhr afirma que já recebeu proposta até de 5 milhões de dólares, mas que vai continuar com o processo judicial. “Eu não julgo quem aceitou. Cada família tem a sua situação.
Pra mim, tem coisas nesta vida que não se vende. É uma questão de honra, de dignidade”, comenta ela, que perdeu o marido Rolf Gutjahr, quando a filha deles, Luíza, tinha apenas 4 anos.


Pilotos do Lagacy nunca foram punidos

Dez anos se passaram e os envolvidos no acidente com o voo 1907, que matou 154 pessoas, não foram punidos. Após recursos em todas as instâncias, os pilotos americanos do Legacy, Joseph Lepore e Jan Paul Paladino foram condenados por atentado contra a segurança do transporte aéreo, com pena de três anos, um mês e 10 dias de reclusão em regime aberto. E eles ainda tentaram reduzir a punição para prestação de serviços sociais, mas o Supremo Tribunal Federal (STF) negou o pedido no ano passado. Agora, eles podem escolher cumprir a pena no Brasil ou nos Estados Unidos. No mesmo ano do acidente, a Justiça Federal brasileira liberou os pilotos para voltarem ao país de origem, na condição de que retornassem para cumprir os atos dos inquéritos. Eles nunca mais pisaram no Brasil e o jato Legacy-600 continua voando.

De acordo com Salma Assad, que perdeu o sobrinho no acidente, o pior erro que o Brasil cometeu foi ter permitido que os pilotos fossem embora. “É claro que eles têm culpa e não terem pagado por isso até hoje é inaceitável. Essa punição é injusta e imoral, mas, infelizmente, é o que a nossa legislação determina”, afirma. A diretora da Amigos das Vítimas do Voo 1907 Rosane Gutjahr acrescenta que, durante muitos anos, as famílias lutaram no Congresso para atualizar a lei. “Eles foram condenados com base em um artigo do Código Penal de 1940. É ridículo, mas não há interesse em mudar isso. Se é essa a punição, que ela seja ao menos cumprida”, reclama.

Os advogados dos pilotos atribuem a culpa a erros do sistema de controle aéreo brasileiro. Apontados como responsáveis pelos americanos, os cinco controladores de tráfego que trabalhavam no dia do acidente foram investigados, denunciados e absolvidos. Somente o sargento da Aeronáutica Jomarcelo Fernandes dos Santos foi condenado, na Justiça Militar, a um ano e dois meses de prisão por homicídio culposo. De acordo com a acusação, ele “ignorou todas as normas de segurança de voo”. A pena também não foi cumprida ainda.

Caso deu início a crise no setor


O acidente entre o jato Legacy e o boeing da Gol detonou a pior crise da história da aviação brasileira — o apagão — e escancarou a precariedade do transporte aéreo no país. Diante da possível atribuição de culpa aos controladores de voo e do afastamento de oito deles para serem investigados, a categoria iniciou uma operação padrão para denunciar o excesso de carga horária e condições inadequadas de trabalho. Por mais de um ano, o setor passou por dificuldades, passageiros esperaram horas para embarcar, voos foram cancelados, pilotos, hostilizados e a crise ocasionou, inclusive, a queda do então ministro da Defesa, Waldir Pires.

O Congresso chegou a abrir a Comissão Parlamentar de Inquérito do Apagão Aéreo, mas, de acordo com parentes das vítimas, toda essa discussão não deu em nada. Menos de um ano depois, em 17 julho de 2007, um avião da companhia aérea TAM, ao tentar pousar no Aeroporto de Congonhas, em São Paulo, não conseguiu frear, ultrapassou os limites da pista e colidiu com um posto de gasolina matando 199 pessoas. Para Neusa Machado, que perdeu o marido no acidente da Gol, o momento foi horrível. “As famílias reviveram toda aquela dor, aquele desespero. Eu senti uma culpa enorme, porque tudo o que gente mais tinha feito nos últimos meses era implorar para as autoridades que fizessem algo para que uma tragédia dessas não se repetisse”, se emociona a psicóloga.
 

 

 

 

 

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