Sem uma condenação, Isac Pinheiro dos Santos, morador do Entorno do Distrito Federal, está preso há quase um ano, incomunicável. Passou nove meses na Penitenciária Federal de Campo Grande (MS), a 1.100km da família. E só falou com um parente duas vezes, por meio de videoconferência. A mãe nem sequer sabe onde ele está. O rapaz de 29 anos depende dos serviços de um defensor público, que nunca esteve com ele pessoalmente. O caso tramita sob segredo de Justiça. Mas por que tanto mistério?
Isac é acusado de integrar um grupo de brasileiros que organizava uma célula terrorista e planejava um atentado nos Jogos Olímpicos de 2016. Policiais federais rastrearam redes sociais, sites acessados e mensagens trocadas entre os suspeitos pelo aplicativo Telegram, e verificaram intensa comunicação, conclamando interessados a prestar apoio ao Estado Islâmico (EI), com treinamento no Brasil. A investigação resultou na Operação Hashtag, deflagrada em julho de 2016.
Federais prenderam 15 pessoas em nove estados e as encaminharam a Campo Grande. Alguns noticiaram a realização do “batismo” ao Estado Islâmico, conhecido como bayat — juramento de fidelidade exigido pela organização terrorista a novos integrantes. Agentes também identificaram mensagens de celular (inclusive com diálogos sobre como fabricar bombas caseiras) relacionadas à possibilidade de um ato terrorista na Rio-2016.
Dois acusados deixaram o presídio, em 17 de setembro, usando tornozeleiras eletrônicas. No entanto, há três semanas, o juiz Marcos Josegrei da Silva, da 14ª Vara Federal de Curitiba, condenou oito. Isac ficou de fora da sentença, mas teve a prisão prorrogada por mais 30 dias. O magistrado enviou o caso à Justiça Federal em Brasília, que o remeteu a Anápolis (GO), comarca à qual está subordinada Águas Lindas (GO), cidade do Entorno onde Isac morava com a mãe.
Rejeição do pai
Isac nasceu em Parnaíba (PI), em 1988. Ainda no primeiro ano de vida, a mãe, Maria de Jesus Machado Normanda, mudou-se para o DF. Assim que arrumou trabalho como diarista, buscou o menino. Pai, mãe e filho moraram juntos por dois anos. Com a separação, Maria decidiu voltar à terra natal. O pai continuou em Brasília, onde começou a trabalhar como cinegrafista em uma emissora de tevê. Casou-se de novo, teve mais dois filhos e nunca mais, segundo os parentes, quis ter contato com Isac.
Desempregada, Maria retornou à capital federal com Isac, quando ele tinha 10 anos. Os dois se estabeleceram em Ceilândia, onde moravam parentes. Entre eles, Ananias Pinheiro, tio paterno de Isac. “Sempre comprei o que ele precisava e ele me procurava para ouvir conselhos. Convivia com os meus filhos, era estudioso. Mudou o comportamento quando foi para Águas Lindas. Lá, ele se juntou a más companhias”, conta Ananias. Vivendo de diárias, Maria trocou o DF pelo Entorno em busca de um aluguel mais barato.
Mãe e filho ainda voltaram a Ceilândia, mas, também por causa do valor do aluguel, fixaram-se em Águas Lindas. Isac passou a consumir maconha e cocaína. Com 18 anos recém-completados, após discutir em um jogo de futebol, deixou a quadra e voltou com um revólver. Atirou no desafeto, filho de um policial militar, que sobreviveu. Poucos minutos depois, PMs prenderam Isac na porta do colégio, em Ceilândia. Ele tentou esconder a arma na mochila de uma adolescente. Acabou condenado por tentativa de homicídio, porte ilegal de arma e corrupção de menor.
Da Papuda à religião
Nos dois anos no Complexo Penitenciário da Papuda, Isac decorou a Bíblia. Mas, ao sair da cadeia, converteu-se ao islã. Seguidor do islamismo há 30 anos, o tio Ananias o levou à mesquita da 912 Norte. “Ele estudava muito, fazia as orações. Fez muitos amigos”, conta Ananias. Um desses amigos, de 16 anos, apresentou Isac ao EI. “Eles ficavam vendo vídeos disso (EI), que não tem nada a ver com a religião”, ressalta.
O tio diz ter feito de tudo para convencer o sobrinho de que aquilo era errado. “Falei que o Estado Islâmico é formado por mercenários, financiado por países interessados em desestabilizar o Oriente Médio. Mas Isac sempre foi rebelde. Muito provavelmente por causa da ausência do pai”, comenta Ananias, dono de uma pequena empresa de dedetização, com loja na Asa Norte. “Isac trabalhou aqui. Mas, depois de preso, só vinha para ver clipes de rap na internet. Músicas que falam de violência”, conta o tio.
Ananias não tem dinheiro para pagar um advogado para o sobrinho. Nem a mãe de Isac, que, aos 52 anos, ganha R$ 1,1 mil mensais, fruto de uma aposentadoria engordada pelo bico como diarista em uma loja. Ela recebe o benefício desde que teve câncer de colo do útero, em 1999. Cria uma neta de 7 anos, com quem mora em um barracão, que divide um lote com outros três.
A esse endereço, policiais civis do DF chegaram em junho de 2016, com um mandado de prisão contra Isac. Informaram que ele não havia cumprido a pena pela tentativa de homicídio. O juiz havia errado a conta e mandado soltá-lo antes do tempo. “Isac não estava, mas os policiais entraram e vasculharam a casa toda. Quando um viu a roupa dele do islã, o tapetinho em que rezava e um Corão, falou assim: ‘Olha só, além de bandido, é terrorista!’”, relata Maria de Jesus.
Dias depois, dois homens se apresentando como policiais federais apareceram na casa de Maria de Jesus. Perguntaram por Isac. O rapaz não estava, mas a mãe autorizou a entrada dos estranhos. “Eles levaram todas as coisas da religião dele (do filho)”, lembra a mulher. Isac já havia se entregado à Polícia Civil. Estava preso na Papuda, cumprindo a antiga pena.
Sem saber do desencadeamento da Hashtag, Maria de Jesus foi visitar o filho no presídio brasiliense. Mas, ao chegar lá, um funcionário a comunicou que ele havia sido levado pela PF para Campo Grande, em 25 de julho. “Disseram que era só para uma averiguação, que ele logo voltaria. Mas nunca voltou. Desde então, não durmo, fico igual zumbi”, comenta a mãe do acusado.
Falta de comunicação
Sem nunca terem recebido qualquer comunicação da PF ou da Justiça Federal, Maria de Jesus e Ananias começaram uma peregrinação em busca do paradeiro de Isac, até descobrirem a Defensoria Pública da União. “Eles me disseram que Isac tinha direito a uma visita por mês, lá em Campo Grande. Preenchi um tanto de papel, um tanto de vez, mas nunca consegui ver o meu filho. Sempre alegavam que ele estava muito nervoso”, conta Maria de Jesus.
Assim como os demais presos na Hashtag, Isac foi colocado no Regime Disciplinar Diferenciado (veja O que diz a lei). “Ele ficou lá nove meses. Nesse tempo, só nos falamos duas vezes, por vídeo. Na primeira conversa, estava tranquilo, mas, na segunda, só disse que estavam acontecendo coisas ruins”, recorda-se a mãe. Ninguém também avisou que Isac foi levado de Campo Grande para outra cidade. “Soube por um acaso. Quando liguei para a DPU no Paraná, me disseram que o caso havia saído de lá e ido para Anápolis”, diz Maria de Jesus.
A mulher foi a Anápolis há nove dias. Lá, contaram a ela que o filho estava na penitenciária de Aparecida de Goiânia (GO). “Mas me disseram que eu não poderia visitá-lo e que, em breve, ele seria transferido para Brasília, por ordem de um juiz”, concluiu a diarista. Na sexta-feira, ela esteve na Vara de Execuções Criminais de Brasília, mas também não teve informação sobre o filho. O mistério continuava ontem.
Só um seguidor do islã
No pedido pela renovação da prisão preventiva dos acusados, aceito por um juiz federal, dois delegados destacaram que, sobre Isac, valia destacar, naquele momento, “aspectos da sua personalidade que comprovam sua tendência à prática de crimes violentos”. Porém, como destacam os policiais, não foi apreendido computador na casa do suspeito, nem celular, pois ele não tinha esses.
Nomeado advogado de Isac pelo juiz federal responsável pelo caso, Constantino Lopes garante ter feito uma “excelente defesa”. “Não há prova contra ele. O réu é só um seguidor do islã. É uma questão de opção religiosa”, destaca. O processo aguarda a sentença do magistrado, o que não tem prazo.