Instantes depois, o ator viu que errou o palpite. Um sujeito acabara de saltar da plateia e invadir o proscênio para tentar salvar o Salvador. "Não matem Jesus", teria gritado antes de entrar em ação. "Olhei para o lado e tinha um cara com um capacete de moto na mão", contou Rodrigues, que foi agredido pelas costas, para espanto dos cerca de 3 mil presentes na Praça do Trabalhador, onde o espetáculo foi apresentado na Sexta da Paixão, 30.
O público que filmava a cena da crucificação de Cristo, clímax da peça, acabou gravando tudo e as imagens viralizaram nas redes com mais de 600 mil visualizações - número 30 vezes maior do que a população de Nova Hartz, com cerca de 20 mil habitantes. No vídeo, dá para ver que Rodrigues seguiu normalmente o script, isso até o outro rapaz tentar mudar o roteiro da História.
A voz de Jesus, dependurado na cruz, sai de um alto-falante: "Pai, em Tuas mãos entrego meu espírito". Em meio à fumaça de gelo seco e uma trilha sonora de tensão, o soldado romano caminha até lá e crava uma lança no lado direito do peito de Cristo.
É aí que, de repente, um dos espectadores, mesmo de calça e com uma das mãos ocupadas, salta mais de um metro para cima do palco principal - ao todo, foram montados oito para a peça. Ligeiro, ele desfere um golpe com o capacete e dá um chute em Rodrigues. Entre os presentes, há quem diga que o agressor, que tem o nome mantido em segredo apesar de ser conhecido na cidade, estava "transtornado". Já outros argumentam que tem "problema mental" ou ainda que está passando por um "momento difícil".
O homem foi contido por atores, contrarregras e organizadores do evento e logo retirado de cena. O público ajudou a mantê-lo isolado até a chegada da Brigada Militar, a PM gaúcha. Passado o "transtorno", o espetáculo continuou; a plateia conseguiu ver Jesus ressuscitar e aplaudiu de pé no fim.
Atrasado
Estreando no papel de Jesus, o ator e ex-seminarista Fernando Pires, de 19 anos, contou que não viu nenhuma parte da confusão porque estava de olhos fechados, concentrado em ser crucificado. "Ele chegou 2018 anos e três minutos atrasado para salvar Jesus, porque até na peça eu já tinha dado o suspiro final", disse.
Segundo conta, ele achou que o tumulto fazia parte da encenação. "No momento que o guarda encosta a lança, têm uns trovões e o pessoal que fica atrás da cruz faz barulho", disse Pires, que em edições anteriores interpretou o anjo Gabriel e um ancião do Templo. "Só percebi que tinha algo errado quando os narradores disseram que a peça iria continuar."
"A gente conseguiu se manter calmo e a energia que o público passou deu força para seguir", afirmou. "Mas, sinceramente, na hora pensei que eu sou um ótimo ator. Interpretei Jesus tão bem que o cara achou que era de verdade."
Encenada há cinco anos, a Paixão de Cristo de Nova Hartz é feita pelo Planeta Jovem, grupo teatral que reúne atores voluntários da comunidade, muitos deles sem experiência em artes cênicas. Para se manter, o grupo recebe doações, até de materiais - o capacete usado por Rodrigues, por exemplo, tinha sido dado por um amigo. O ator acredita que adereço amorteceu o impacto. "Não tive ferimentos graves", disse. "Só a cabeça que ficou doendo por uns dois dias."
O diretor do espetáculo Adriano Ferreira, de 40 anos, lamentou o ocorrido, mas ponderou que, pelo menos, o episódio serviu para dar publicidade ao grupo. "Eu não queria que fosse dessa forma, mas a gente fica 'feliz' porque a cidade ficou conhecida", disse. "Era um momento bem forte, a plateia estava muito emocionada, a adrenalina estava alta: o rapaz surtou, não soube separar ficção de realidade."
A vítima preferiu não registrar boletim de ocorrência. "Ele é irmão de um grande amigo meu", disse Rodrigues sobre o homem que invadiu a Paixão de Cristo. "Perdoei na mesma hora que aconteceu. A gente estava passando uma mensagem de amor na peça, então não ia fazer diferente." A reportagem não conseguiu localizar o agressor.
fonte: Estadão Conteudo