O sotaque brasileiro ganhará eco entre as ruínas do Egito Antigo. Pela primeira vez, o Brasil comanda uma missão arqueológica no país. O trabalho, liderado por pesquisadores da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), pretende desvendar, no início de 2019, os segredos de uma tumba construída 1,5 mil anos antes de Cristo na antiga região de Tebas, hoje Luxor, no sul do Egito.
"Existem arqueólogos brasileiros que trabalham no Egito, mas, até então, sempre com missões estrangeiras", conta, animado, José Roberto Pellini, professor da UFMG que chefiará a empreitada. Foi depois de um convite do governo egípcio que Pellini e sua equipe montaram o projeto de escavação. "Eles nos deram muitas opções de monumentos e acabamos escolhendo a tumba tebana 123."
A estrutura foi construída na época do faraó Tutmósis III, conhecido como o Napoleão do Egito por suas empreitadas militares. Mas, ao contrário das luxuosas tumbas destinadas aos reis, como a de Tutancâmon, as tebanas eram um pouco mais modestas: serviam como cemitério de nobres e guardavam objetos que eles queriam levar para a vida após a morte. A 123 era de Amenenhet, sobre quem pouca coisa se sabe - até agora.
"Ele era um sacerdote e ocupava o cargo de contador de pães, o que era algo importante porque o pão funcionava como uma espécie de salário no Egito", explica Pellini. O trabalho de escavação da tumba começará por uma pequena sala anexa, que está entupida até o teto de sedimentos. O que vão encontrar lá dentro é um mistério.
A tumba 123 nunca foi estudada, mas o que os brasileiros acharam apenas em uma limpeza superficial no início deste ano é promissor. "Identificamos vários materiais, pedaços de sarcófagos, duas partes de múmias, estatuetas. Tudo muito preservado, de altíssima qualidade. A expectativa é grande."
Para especialistas, a missão coloca o Brasil no circuito da produção científica internacional. "É mais um importante passo para a área e que vai consolidando o diálogo com pesquisadores europeus, do Egito e americanos", diz Maria Beatriz Borba Florenzano, do Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo (USP).
Método
Diariamente, às 6h, as escavações começam. Antes, um toxicologista avalia o risco de contaminação de materiais, guardados há centenas de anos. No fim do dia, longe da necrópole, o trabalho é quase igual ao de qualquer mortal: anotações em planilhas, separação de fotos e vídeos. Nada do que for encontrado na tumba deverá ser trazido ao Brasil. Um acordo com o governo egípcio garante que as peças permaneçam no país.
Os pesquisadores ficarão no Egito entre janeiro e fevereiro. O trabalho de escavação só deverá ser concluído nos próximos quatro ou cinco anos. Nesse período, mais brasileiros, incluindo estudantes de graduação, devem se juntar ao projeto, em uma espécie de "tumba-escola". Segundo Caroline Murta, coordenadora da escavação, a vantagem é que a arqueologia no Egito é "didática" como em poucas partes do mundo. Protegidos pelo clima desértico, até restos humanos são achados em bom estado de conservação.
Para democratizar o acesso, os pesquisadores planejam colocar a tumba ao alcance de qualquer um por meio da realidade virtual. Para isso, são feitas imagens em 360 graus da estrutura. Outro objetivo do grupo é abri-la ao turismo.
A expedição conta ainda com um trabalho menos "Indiana Jones", a cargo do grupo argentino que participa do projeto. Os hermanos vão fazer uma incursão antropológica, de interação com a comunidade. "Nos interessa trabalhar com os vivos da necrópole, não só os mortos e faraônicos", diz María Bernarda Marconetto, antropóloga e professora da Universidade Nacional de Córdoba, na Argentina.
Fascínio antigo
O fascínio do Brasil pelo Egito vem desde o Império e tem em dom Pedro II seu maior representante. Apaixonado pela civilização milenar, o imperador fez duas viagens ao Egito. "Ele conhecia alguns símbolos e, enquanto viajava, anotava, transcrevia e desenhava tudo o que via", conta a historiadora Liliane Corrêa. Como parte de sua pesquisa de pós-doutorado, Liliane refez, no início deste ano, os caminhos do imperador.
Além do fascínio pelos templos - o de Karnak, em Luxor, era o seu preferido -, Pedro de Alcântara também "descrevia os pores do sol e suas cores em contraste com o Nilo e o deserto". Peças adquiridas pelo imperador foram levadas ao Museu Nacional, no Rio, que pegou fogo em setembro.
Nas universidades, o interesse de pesquisadores pelo Egito Antigo só ganhou força na década de 1980. Mas ainda é pequeno o número de cientistas brasileiros que se dedicam à área.
Para Júlio Gralha, professor de História Antiga da Universidade Federal Fluminense (UFF), a expedição abre campo de atuação para arqueólogos. E compreender aspectos do Egito Antigo, como a forma de lidar com a homossexualidade e com o feminino, ajuda a refletir sobre dilemas contemporâneos. "Precisamos estudar as sociedades da Antiguidade. Elas ainda nos dão respostas." As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.