Jornal Estado de Minas

Massacre em Suzano: 'Geração do quarto' grita por socorro



Jovens deprimidos, suicidas, sem perspectivas, desesperançados. O que tem levado uma geração a lidar com dores tão profundas que não veem sentido em viver? A única certeza é que há um grito por socorro. E a cada dia vira um problema de saúde pública assustador.

O neuropsicólogo Hugo Monteiro Ferreira, professor da Universidade Federal Rural de Pernambuco, escritor, criou, em 2015, o termo “geração do quarto” para retratar adolescentes e jovens que têm uma relação de dependência com a internet que os torna enclausurados em si mesmos. Vivem uma solidão que machuca diante da dificuldade de se relacionarem com as famílias e o mundo.

Doutor em educação e autor de nove livros, entre eles Benedito e Emílio – Ou quando se nasce com um vulcão ao lado, indicado para o Jabuti 2014 na categoria Juvenil, Hugo estará em Belo Horizonte no próximo domingo (26) para participar do Sempre um Papo, quando falará sobre Emílio, que convida o leitor a refletir sobre tolerância e respeito ao próximo e à sua individualidade.

Mas, certamente, abordará questões do seu próximo livro, Geração do quarto: quando crianças e adolescentes nos ensinam a amar, que lançará no segundo semestre, resultado de uma pesquisa de campo, feita em cinco capitais brasileiras, sobre a geração que nasceu no fim do século 20 e início do século 21 e que apresenta adoecimento emocional e mental.

Ele conversou com o Estado de Minas diante do calor da tragédia ocorrida em Suzano, São Paulo, quando os ex-alunos Guilherme Taucci Monteiro, de 17 anos, e Luiz Henrique de Castro, de 25, mataram oito pessoas na Escola Estadual Raul Brasil, na quarta-feira, dia 13.

Crianças, jovens morrendo e matando.
A sociedade está doente? Em que momento ela se perdeu?

Na história das infâncias e das juventudes, a sociedade sempre as tratou como se elas não fossem realmente importantes em e para um bom projeto societário. Basta analisar que a emergência do conceito de infância e de adolescência é recente e há bem pouco tempo internalizado pelas sociedades de modo geral. O adultismo ou o adultocentrismo governam as sociedades, as tradicionais, as modernas, as contemporâneas e, infelizmente, esse adultismo tentou e ainda tenta silenciar as crianças, os adolescentes e as juventudes. Silenciar nem sempre é impedir que se grite, mas é constantemente não ouvir a voz e nem permitir a troca dialógica. Toda sociedade adoece quando não se abre para as infâncias e as juventudes, tratando-as como menores, ora porque recusa o lúdico, o humor, o riso, a leveza, optando pela rigidez machista, ora porque quer fazer da criança, do adolescente, do jovem espécie de adultos mirins, usados, antes de tudo, para o consumo. A doença que acomete a sociedade contemporânea não é nova e nem inédita, pode-se diagnosticá-la ao longo do tempo do pensamento humano: chama-se barbárie e sempre emerge em epidemia quando os excluídos, tomados pelo ódio e pelo desamor, se tornam incontroláveis. Estamos, sim, doentes e a doença não me parece ter cura fácil, embora, desde todo o tempo, se soube curável.
A questão é que ela é menos da ordem das terapias e mais da ordem das prevenções. O que estamos fazendo para prevenir os adoecimentos? No meu ver, pouca coisa, sobretudo, no Brasil, país em que, por exemplo, o suicídio de pessoas entre 15 e 29 anos é tido como a quarta causa morte.

É possível apontar culpados?
Não quero tratar com culpas. Não acho que culpas deem conta da dimensão complexa para que possamos resolver essa doença social. Mas entendo que existam responsabilidades. E penso que a maior responsabilidade está nas mãos dos adultos, em outras palavras, das famílias, das escolas, das igrejas, das empresas, dos organismos sociais mais atuantes, digamos assim. Não se ouve o que as crianças sentem e pensam e também não se ouvem os jovens. A não escuta é indício de que não se quer dar ouvido ao que eles pensam e sentem e isso é um grande problema. Nós, de modo geral, costumamos categorizar os jovens, como se fossem rebeldes, atônitos, problemáticos, indisciplinados, violentos, irresponsáveis e também fazemos isso com as crianças, considerando-as menos inteligentes, menos importantes, frágeis e incompletas.
No meu ver, as famílias estão muito doentes e estão em desordem. Mas não precisam de uma ordem imposta e nem de conversões religiosas ou espécie de moralismo conservador, mas de diálogo, de apoio, de cuidado do Estado. No Brasil, os problemas que acontecem dentro de casa, violência contra a mulher, abuso sexual, fome, não saneamento das casas, miséria, repercutem na escola. Os responsáveis pelo adoecimento da sociedade brasileira e mundial no meu ver somos todos nós que não admitimos a existência saudável das diferenças humanas. Quando queremos que todas as pessoas sejam iguais, queremos que todas as pessoas nos espelhem, nos imitem, nos copiem e nos sigam. Queremos banir a liberdade e dar vazão às opressões que nos habitam. Não é com culpa que se cura. Cura-se com amor. É de amor e não de culpas que precisamos. Os opressores sempre querem identificar culpados.
Quero trabalhar como amamos mais.

A “geração do quarto” é fruto do quê?
A geração do quarto é intergeracional. Isto é, não é uma geração com cronologia fixa, datada, predeterminada pelo tempo e pelo espaço. No entanto, é uma geração que se caracteriza pelo adoecimento emocional e mental. São pessoas que passam mais de seis horas do seu dia, quando estão em casa, nos seus quartos, isoladas, sem diálogo, sem troca, sem a experiência do contraditório. São predominantemente pessoas que nasceram no fim do século 20 e início do século 21. Ela emerge da incompreensão, da frequente comparação, da ausência de empatia, compaixão, diálogo, amor que reinam no mundo contemporâneo. É uma geração fragilizada emocionalmente, educada por outra geração também assim fragilizada. A geração do quarto nos adverte: talvez essa seja uma grande lição de amor. Adverte-nos de que estamos perdendo nossos meninos e nossas meninas. Perdendo para os comportamentos perigosos – automutilação, ideação suicida, suicídio, depressão, síndromes, fobias, distúrbios alimentares, polidependência, uso abusivo de álcool e de drogas, violência contra as mulheres, isolamento digital.
Quando olhamos os transtornos mentais como se fossem um grande problema do qual devemos nos livrar, no meu ver, mais uma vez, cometemos erros. Eles são sinais de que erramos com o ensino do amor e da paz. Precisamos aprender com os gritos de socorro. As crianças e os adolescentes, com seus corpos, nos dizem o que nos vinca a alma. É, para mim, um gesto de amor. O amor que é anunciado pelas crianças. Elas estão nos chamando a atenção. Não se pode querer fechar os olhos. Só se estivermos, de fato, tomados pelo sentimento do nazismo e do fascismo. Essas doutrinas sempre odiaram infâncias.



É pertinente dizer que a tecnologia é a grande vilã? A Era Digital com milhões de amigos, milhões de curtidas, mas com isolamento e solidão reais?
A questão não é externa somente, mas interna. Responsabilizar a web, a internet, as redes digitais é, outra vez, querer imputar a tal culpa. Diz-se que a culpa é do computador, porque não se quer perceber que a cibercultura foi criada pelos humanos. A vida digital é um dado da realidade contemporânea, querer negá-la ou atribuir a ela um poder devastador parece-me ser o movimento de querer apontar o dedo na direção inversa, eximindo-se de responsabilidade e continuando no mesmo processo de adoecimento. Só crianças, adolescentes, jovens e adultos fissurados emocionalmente fazem da vida digital seu processo de saída. Não me parece que seja justo e nem racional tratar o mundo virtual como inimigo. O que penso que deva ser analisado é como construímos uma sociedade que, no lugar de querer partilhar na presença seus afetos, prefere viver nos afetos a distância, nas relações projetadas, nas vidas inventadas pela plasticidade das máquinas. Por que será que nossos filhos preferem ficar seis horas dentro de seus quartos, usando o mundo digital, e não fazem questão de ficar conosco? Não percebemos o que eles estão nos dizendo: preferimos as máquinas, porque também não fomos devidamente escolhidos? É difícil a gente perceber que as máquinas e as suas potências são nossas criações.

A falta de amor é a explicação para tragédias como a de Suzano?

Sim. O amor é o grande problema de tragédias como a que ocorreu em Suzano. Na verdade, não o amor, mas a sua inversão, o ódio. A violência é a materialização do ódio. O ódio se constrói. Não é genético. É transdisciplinar. O problema da escola citada é de natureza transdisciplinar, multifacetado, multirreferencial e multidimensional. Não se deve reduzi-lo a uma única causa e matriz. Há variáveis diversas. Precisamos analisá-las acuradamente. Mas, se queremos encontrar um dos fatores, creio que a ausência de diálogo, de escuta e de amorosidade pode ser um fator forte e determinante para o que infelizmente vimos. Ainda podemos ver muito mais. Temo que essa barbárie esteja se ordenando em redes incontroláveis. Temo que o Estado brasileiro queira resolver o desamor com o ódio. Eis uma ameaça real, no meu ver.

Como elas podem ser ajudadas?
As pessoas podem ser ajudadas se forem acolhidas como podem ser. Se o preconceito for erradicado e pararmos com essa ideia equivocada de que o mundo é dividido entre bons e maus, entre cidadãos de bem e bandidos. A condição humana é complexa e precisamos compreendê-la na sua complexidade. Podemos fazer o que tem feito o CVV (Centro de Valorização da Vida) há mais de 50 anos, ouvir sem julgar, acolher com amor. É muito importante que criemos um Estado que assegure direitos às pessoas, que saiba entender a existência da diversidade e que não queira inviabilizar as pessoas diferentes e tornar certas identidades como as referências, os modelos. A desesperança nasce da rejeição. Humano rejeitado entra em processo de desvinculação e pensa em morrer e morre em vida, morre em morte e mata para viver.

Em momentos assim, destaca-se a educação de antigamente como sendo exemplo. Formação mais severa. Mas vivemos em outro tempo. No entanto, em que os pais de hoje estão errando?
Não cabem comparações. É um equívoco. Quem age assim nega o presente e se volta para o passado, porque não quer o presente, quer o antigo. A questão não é ausência de severidade. Muito pelo contrário. A violência infradoméstica contra meninos e meninas é altíssima. Basta analisar os registros dos conselhos tutelares. Não se deve querer conter vida com rigidez. Rigidez nada tem a ver com rigor. Rigor tem a ver com cuidado acurado. Falta rigor às famílias, porque falta cuidado acurado. No passado, os pais eram tidos como severos e foram eles quem criaram as gerações adoecidas e atônitas as quais geraram as gerações contemporâneas. Como eu já disse, não enxergo que haja um erro novo, inédito, para mim, há uma sequência de erros continuados.

É assustador saber que autoridades conhecem a chamada Deep Web, que pessoas planejam crime por lá, e não conseguem, simplesmente, bloqueá-los?
O Estado não sabe tratar com o submundo da web, porque o Estado fez questão de negar a existência desse submundo. Relegou-o às infâncias, às juventudes. Coisa menor. Coisa de criança. Coisa de jovem. Não cabe ao universo adulto. Mas agora, ainda que não queira, terá de olhar, menos porque quis ver e mais porque não pode negar a ferida que escorre em seu corpo.


Serviço

Livro: Emílio – Ou quando se nasce com um vulcão ao lado

Autor: Hugo Monteiro Ferreira

Ilustrador: André Beltrão

Editora: Escrita Fina

Páginas: 112

Preço sugerido: R$ 44,90

 

 

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