Após duas horas e meia de sessão, o Superior Tribunal Militar interrompeu na tarde desta quarta, 8, o julgamento do habeas corpus dos nove militares detidos desde 8 de abril, por terem disparado 80 tiros contra o carro do músico Evaldo Rosa, que morreu em Guadalupe, na zona norte do Rio. O catador de recicláveis Luciano Macedo também foi atingido e morreu. Quatro ministros militares já se manifestaram. O julgamento foi suspenso após pedido de vista do ministro José Barroso Filho.
O relator do pedido da defesa, Lúcio Mário de Barros Góes, negou liminarmente habeas corpus aos militares no dia 12 de abril, contra decisão de primeira instância que havia determinado a prisão preventiva. No julgamento do mérito pedido, ele se manifestou pela soltura. "Não emergem sobre os documentos evidências que levem a crer que a hierarquia e as disciplina militares ficarão ameaçados ou atingidos no caso de os pacientes serem postos em liberdade".
"Verifico que neste momento processual decorrido um mês dos fatos, não mais subsistem os motivos para justificar a manutenção da custódia dos pacientes, eis que as medidas adotadas pela autoridade policial revelaram-se suficientes para cessar a apontada ameaça à hierarquia militar", afirmou.
"Conheço do pedido para desconstituir a ordem (de prisão preventiva) e conceder liberdade aos pacientes para que respondam aos procedimentos investigatórios em curso e ao processo penal, sem prejuízo de nova segregação por fato superveniente. Determino os alvarás de soltura, se por outro motivo não estiverem presos."
O ministro Francisco Joseli Parente Camelo, que se manifestou, em seguida, afirmou que a "divulgação que o crime alcançou nos meios de comunicação gerou intranquilidade na sociedade". No entanto, disse que "cabe aos magistrados a frieza necessária para o enfrentamento dos fatos".
"É fundamental recorrer ao equilíbrio para que o processo possa desaguar na punição adequada. Ao contrário estaríamos antecipando a pena em execução provisória. Estaríamos ferindo de morte a presunção de inocência.
Divergência
A ministra Maria Elizabeth Guimarães Teixeira Rocha abriu divergência e se manifestou para não conceder o habeas corpus. "Tive oportunidade de ler todos os laudos. Existem perícias e com base nelas eu fundamentarei a minha divergência".
"Vossas excelências conhecem minha posição nesta corte. eu sou garantista e defendo que a prisão em segunda instância não me parece mais adequada. Sempre me coloquei contra ela. Eu defendo a inconstitucionalidade dela, mas nesse caso não são apenas as regras de engajamentos que foram violadas. Muito mais que isso, os postulados da prisão preventiva estão presentes", afirmou.
A ministra segue. "Não se está a condenar prematuramente os flagranteados, porque a Constituição os considera inocentes, mas verificar se outros valores de igual relevância devam ser acautelados em preservação da ordem pública".
Como bem pontuou o MP Militar na audiência de custódia, está se tratando de uma denunciação por crime de duplo homicídio, e não por mera inobservância de lei, regulamento ou instrução.
A ministra ressaltou que se trata de um "fato gravíssimo que tirou a vida de dois cidadãos inocentes, pais de família". "Trata-se do caso em que visível há gravidade concreta e os riscos que a concessão da liberdade trariam não só a ordem pública, mas a instrução processual".
"Nenhuma das vítimas foram ouvidas, o que levou as autoridades judiciárias a capitular os fatos como mera infração do Código Penal Militar. Só após a repercussão midiática dos fatos, do pronunciamento de pessoas que presenciaram a ação, e filmaram parte dela, é que foram ouvidas pelo próprio MP as vítimas sobreviventes, sendo alterada substancialmente a versão inicial dos militares, que se revelou inverídica, comprometendo a cedibilidade do próprio comando militar que apresentou a suca sociedade em um primeiro momento, para desmenti-la depois", alertou.
Ela ressaltou que nenhuma troca de tiro foi constatada, ao contrário do que disseram, em depoimento, os militares presos.
A ministra ressaltou que as versões apresentadas pelos militares se trataram de "um esquema engendrado para escamotear a verdade". "O excesso e ausência dos meios moderados é evidente. A vítima confundida com um criminoso sem camisa estaria de costas. Como podem ter aberto fogo sem verificar que ela estava armada ou que apresentaria outros riscos?".
A ministra ainda ressaltou que foram atingidos pelos tiros um bar, uma oficina mecânica e três veículos. "Injustificável 83 balas de fuzil quando (o carro do músico) já estava parado e não disparara contra a guarnição".
"Os acusados não estavam no exercício da garantia da lei e da ordem. Só poderiam ter atuado se o quartel ou eles próprios tivessem sido ameaçados, o que não ocorreu. Investirem eles no papel de polícia, sem respaldo legal e patrimonial, é ilegal, inconstitucional", sustentou.
"O ofício 48 informa que a viatura não foi atingida. Ainda que legítima defesa putativa o excesso é claro e evidente.", anotou.
"Enorme repercussão e revolta social, sendo necessária a manutenção da prisão, tamanha leviandade com que foram disparados tantos projéteis de fuzil na direção de moradores e transeuntes desarmados e desprotegidos. Não se está aqui a dar uma resposta à mídia, mas à tranquilidade da comunidade. Disparos a esmo atingiram muros e gradis e não apenas dois inocentes que acabaram fulminados. A prisão cautelar é decretada com a finalidade de evitar que o agente solto continue a delinquir", ressaltou.
Artur Vidigal de Oliveira também se manifestou contra a prisão dos militares. "Cabe a quem decretou a prisão dizer o motivo do que está decretando".
"Quais foram as normas de engajamento quebradas, se não se apurou?", afirma. "Não estamos julgando fatos. Isso vai ser explorado no momento oportuno, mas em enquadramentos legais que ensejam ou não o decreto preventivo. Nem a garantia, nem a ordem pública foram citados na decisão [que decretou a prisão]", que é o que estamos a julgar".
"Inaceitável a manutenção dos pacientes no cárcere por tempo indeterminado. A prisão preventiva não pode ser antecipação de condenação ou de execução penal sem o devido processo legal. Em muito já está ultrapassado o prazo para oferecimento de denúncia. Mais de 30 dias e não se tem ação penal, não se tem denúncia apresentada. Eu, por diversas vezes, decretei a liberdade. O artigo 79 diz que a denúncia deve ser oferecida no prazo cinco dias e em 15 dias se o acusado estiver solto. Peço vênia, mas tenho a total consciência e acompanho o ministro relator."
Embate. A sessão foi protagonizada por um embate entre Vidigal e a ministra Maria Elizabeth. Enquanto o ministro se manifestou favoravelmente somente a analisar a decisão liminar que mandou os militares para a prisão, Maria Elizabeth defendeu que provas posteriores nos autos do processo. "As vítimas só foram ouvidas depois, porque os militares mentiram para o Comando".
O ministro afirmou que ela avaliou provas que devem ser julgadas em ação penal, e não para julgar a prisão preventiva. "Eles disseram que foram atacados por traficantes porque foram atacados. Se isso é objeto de ação penal, então os Nardoni, a Suzane von Richthofen, também não se aplicaria a preventiva?".
A ministra relatou que, ao todo, o pelotão disparou 249 vezes contra o carro do músico e "à esmo"."Os militares mentiram para o comando e venderam a informação de que foram atacados. Atiraram lateralmente e por trás em um carro que vislumbraram a 320 metros de distância. Inventaram, disseram que tinham sido atacados por traficantes, o que não é verdade. Não há um fuzil, uma bala (na viatura do pelotão)".
"Então, para que existe a prisão preventiva? Os réus mentiram, os réus forjaram um esquema mentiroso, comprometeram o comando, comprometam as Forças Armadas. Isso já é um indício de que podem comprometer o curso processual da investigação. A juíza (de primeiro grau) não tinha esses dados, por isso não colocou na decisão (do decreto de prisão dos militares). Atiraram por baixo, pelas costas e a esmo sem se preocupar com os civis inocentes. Então prá que existir a prisão preventiva na nossa legislação? Não há denúncia ainda porque estão esperando juntar todos os laudos. Os réus mentiram, os acusados mentiram.", ressaltou.
Procuradoria. O vice-procurador-geral de Justiça Militar, Roberto Coutinho, afirmou, em sustentação oral, que a decisão que os mandou para a cadeia os militares foi influenciada pela repercussão na imprensa. "Toda a evidência verifica-se uma decisão judicial, no mínimo, de fundamentação insuficiente".
"Não pode a histórica Justiça Militar ceder ao repentino clamor da opinião pública e ao seu efeito midiático.", afirmou. "Qual foi o fato delituoso? Quem atirou em decisão aos passageiros do veículo? Alguém não atirou, embora pudesse? Algum militar deu somente tiro de advertência? Haveria constrangimento ilegal a quem não atirou ou deu tiro de advertência"
"Não estamos falando aqui de criminosos sem ocupação, sem endereço definido e que provavelmente voltarão a delinquir. Falamos aqui de militares do Exército brasileiro. Um tenente de 25 anos, os outros militares na faixa de 20 e 21 anos de idade. Além disso, nem de longe se pode verificar ameaça à hierarquia e à disciplina", sustentou.
O procurador ainda afirmou que "colegas de farda dos investigados, por puro efeito midiático, ficariam inseguros em seus misteres, temerosos em suas decisões e desamparados no cumprimento de ordens futuras, mormente nesse momento especial do Rio de Janeiro onde vivemos uma verdadeira guerra urbana, onde se privilegia a notícia e, posteriormente, se constata o que de fato ocorreu".
"Não estamos aqui a propalar a absolvição antecipada, até porque não é objeto desta sessão. A instrução criminal tem seu momento próprio com a apuração legítima de tudo não havendo no momento nenhum perigo à aplicação da lei, à ordem pública e à hierarquia e disciplina. A Procuradoria Geral de Justiça Militar propugna que os pacientes respondam à investigação e ao processo em liberdade. Nesta fase prepondera a presunção de inocência, princípio basilar que proíbe a antecipação de pena."
Defesa. Em pedido, a defesa dos militares afirmou que o "decreto de prisão sem qualquer fundamentação fática ou jurídica, o que aponta para sua ilegalidade". "Os fatos ocorreram em área sob administração militar onde os pacientes (militares) se encontravam em patrulhamento de proteção de uma vila de sargentos cujo entorno é cercado de comunidades conflagradas, com ameaças, violências e ataques às guarnições."
Defesa sustentou pela "a falta de fundamentação na decisão que converteu a prisão em flagrante em prisão preventiva para um suposto crime".
"Quantos tiros cada um deu? Os 80 tiros aconteceram ou foi uma construção midiática?", sustentou o advogado Paulo Henrique Pinto de Mello, durante sustentação oral. "Essas pessoas são colocadas pela imprensa nacional, lamentavelmente, como criminosos bárbaros, criminosos inconsequentes, o que não é realidade".
"Não há como dizer que aquilo foi uma execução. Estão tentando colocar isso nesse processo também", afirmou.
"A defesa espera, ela confia, tem certeza que aqui nessa Corte a Justiça será feita. A concessão da liberdade provisória, que é o que se pede aqui, será a garantia que a hierarquia e a disciplina nos quartéis serão mantidas. Manter a prisão põe em risco eminente a hierarquia e a disciplina."
Segundo o advogado, se o decreto de prisão for mantido pelo STM, "os militares vão pensar duas vezes antes de cumprir a missão".
Fuzilamento
Rosa dirigia seu carro, um Ford Ka sedan branco, rumo a um chá de bebê, e transportava a mulher, um filho, o sogro e uma adolescente. Ao passar por uma patrulha do Exército na Estrada do Camboatá, o veículo foi alvejado com 80 disparos pelos militares. O motorista morreu no local. O sogro ficou ferido, mas sobreviveu. O catador Macedo, que passava a pé pelo local, também foi atingido e morreu dias depois.
Inicialmente, o Comando Militar do Leste (CML) emitiu nota dizendo que a ação havia sido uma resposta a um assalto e sugeriu que os militares haviam sido alvo de uma "agressão" por parte dos ocupantes do carro. A família contestou a versão e só então o Exército recuou e mandou prender dez dos 12 militares envolvidos na ação. Um deles foi solto após alegar que não fez nenhum disparo.
Os militares teriam confundido o carro do músico com o de criminosos que, minutos antes, havia praticado um assalto perto dali. Esse crime foi flagrado por uma patrulha do Exército. Havia sido roubado um carro da mesma cor, mas de outra marca e modelo - um Honda City.
Foram presos o tenente Ítalo da Silva Nunes Romualdo, o sargento Fábio Henrique Souza Braz da Silva e soldados Gabriel Christian Honorato, Matheus Santanna Claudino, Marlon Conceição da Silva, João Lucas da Costa Gonçalo, Leonardo Oliveira de Souza, Gabriel da Silva de Barros Lins e Vítor Borges de Oliveira. Todos atuam no 1º Batalhão de Infantaria Motorizado, na Vila Militar, na zona oeste do Rio. Eles devem responder por dois homicídios e por tentativas de homicídio contra os quatro outros ocupantes do carro de Evaldo. A denúncia ainda não foi apresentada à Justiça pelo MPM.
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