Os registros de intolerância religiosa são comuns Brasil afora, mas no Rio têm uma característica particular: passaram a envolver traficantes e evangélicos. Após ataques a terreiros de umbanda e candomblé na Baixada Fluminense, a polícia identificou o mandante e, na semana passada, prendeu oito traficantes acusados de integrar seu grupo, o chamado Bonde de Jesus.
Segundo a polícia, o mandante é Álvaro Malaquias Santa Rosa, o Peixão, do Terceiro Comando Puro (TCP), um dos criadores do Bonde de Jesus, vertente inédita da intolerância religiosa no Estado. Estima-se que existam hoje 200 terreiros sob ameaça. Os casos são investigados pela Delegacia de Crimes Raciais e Delitos de Intolerância (Decradi), criada em 2018.
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STF criminaliza homofobia, mas faz ressalva quanto à liberdade religiosaMassacre em escola de Suzano alerta para 'desajustes sociais' e 'clima de intolerância''Intolerância religiosa', diz Crivella sobre crítica no desfile da MangueiraEstudante é morto com tiro na cabeça em assalto a república; três criminosos foram presos"A situação de intolerância sempre existiu, mas tivemos uma piora quando indivíduos ligados à cúpula de uma facção resolveram se converter", afirma o delegado da Decradi, Gilbert Stivanello. "Eles distorcem a doutrina religiosa e agridem outras religiões, sobretudo as de matriz africana." As principais lideranças evangélicas do Rio condenam os ataques.
Conversão. Um dos primeiros a se converter foi Fernando Gomes de Freitas, o Fernandinho Guarabu, há cerca de quatro anos.
"Alguns deles se converteram dentro do presídio", diz Stivanello. "Eles viveram uma experiência distorcida da conversão, se tornando ‘bandido de Jesus’, como se isso fosse um ato de fé. Se pararmos para pensar, não é muito diferente do terrorismo islâmico. É difícil mesmo entender a lógica", afirma.
Coordenadora do Centro Nacional de Africanidade e Resistência Afro Brasileira, Célia Gonçalves Souza diz que o problema da intolerância é nacional, mas que, de fato, vem ganhando contornos específicos no Rio, sobretudo pela penetração de evangélicos no sistema carcerário. "No Rio, esse problema é muito escancarado e o narcopentecostalismo só tende a crescer. E passa pela questão das penitenciárias, onde há uma entrada muito grande dos neopentecostais."
Na Baixada Fluminense, traficantes passaram a ditar regras dos terreiros, como horários das cerimônias e uso de fogos de artifício e fogueiras.
Há uma semana, o terreiro Ilê Axé de Bate Folha, em Duque de Caxias, foi invadido por traficantes - no 10.º caso da região. Eles quebraram todas as imagens e oferendas e ameaçaram de morte a mãe de santo, que está fora do Estado, na casa de parentes.
"O ataque aconteceu num sábado de casa cheia. Eles entraram com violência, mandando todo mundo sair e quebrando tudo", contou uma testemunha. "O terreiro está fechado. Tiramos tudo de lá e não aconselhamos ninguém a voltar." Segundo a mesma testemunha, outros religiosos fecharam os terreiros e se mudaram.
"Qualquer ataque com contornos de destruição do sagrado tem caráter de racismo religioso", diz a defensora Livia Cásseres, do núcleo contra a desigualdade racial da Defensoria Pública. "À violência que já existe contra essas religiões - que têm uma série de direitos negados -, se soma agora a do varejo de drogas. Mas a violência contra elas é permanente desde a época colonial." Por isso, para Livia, a solução passa por diferentes esferas.
Alerta. A gravidade da situação fez com que, em julho, fosse realizada uma reunião com membros da umbanda e do candomblé, lideranças evangélicas, e representantes da Polícia Civil, do Ministério Público e da Defensoria Pública.
O pastor Marcos Amaral, da Comissão Contra a Intolerância Religiosa, destaca que a denominação "evangélicos" abrange um segmento grande de religiosos, com posicionamentos diferenciados.
3 perguntas para Ivanir dos Santos, Babalaô
O babalaô Ivanir dos Santos recebeu no mês passado, em Washington, o Prêmio Internacional de Liberdade Religiosa entregue pelo Departamento de Estado dos Estados Unidos. Santos é coordenador da Comissão de Combate à Intolerância Religiosa e organizador da Caminhada em Defesa da Liberdade Religiosa, que é realizada há 12 anos, em Copacabana, no Rio.
1. Como foi receber esse prêmio internacional em um momento em que aumentam os ataques a terreiros, em especial no Rio?
Esse prêmio, na verdade, vem reconhecer e legitimar a luta pela causa da liberdade religiosa, contra o racismo, de respeito aos direitos humanos. Estamos passando por um momento muito difícil. E não tem como pensar em intolerância sem pensar em racismo e preconceito contra grupos minoritários.
2. As religiões de matriz africana sempre foram alvo de preconceito. O que mudou agora?
Sim, secularmente, elas sempre foram perseguidas: na Colônia e no Império, pela Igreja Católica; na República, pelo Estado; e nos últimos 30 anos, por grupos neopentecostais e, mais recentemente, por traficantes evangelizados. São traficantes que se dizem evangélicos.
3.
Sim. No Brasil temos um preconceito disseminado na sociedade, virou um comportamento social baseado, fundamentalmente, no racismo. As tradições de origem africana sofrem preconceito. O mesmo pensamento se reflete também no samba, na capoeira, na congada. Manifestações culturais de identidade africana são frequentemente relacionadas ao demônio..