Os negros são a maioria da população do Brasil desde o Censo de 2010 e, este ano, romperam a marca dos 50% também nas universidades do país. No terceiro trimestre de 2019, segundo estimativa do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), atingiram 56% dos cerca de 210 milhões de habitantes, ou seja, quase 118 milhões de brasileiros se declaram negros ou pardos. Quando se trata de empreendedorismo, no entanto, obstáculos impostos pelo racismo estrutural impedem que esse protagonismo se replique nos negócios, sobretudo em um recorte de gênero, no qual as mulheres negras ainda estão na base da pirâmide.
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O presidente do instituto, Renato Meirelles, explica que o empreendedorismo entre as mulheres negras ocorre por duas razões. “A mulher foi para o mercado de trabalho, mas o homem não foi ajudar no trabalho doméstico. Então, ter seu próprio negócio, como costureira, boleira, cozinheira, permite permanecer perto de casa ou mesmo dentro do lar”, justifica. “Outro fator importante que atinge especialmente as mulheres negras é porque, quando ela vai para o mercado formal de trabalho, ganha menos do que os homens e do que as mulheres brancas. O empreendedorismo é uma necessidade para ganhar mais e manter a proximidade com a casa”, avalia.
Ao transportar os dados para o universo feminino, as disparidades são maiores porque a mulher negra está base da pirâmide, revela Tati Brandão, consultora para o Desenvolvimento de Lideranças Negras Femininas do Rio de Janeiro e integrante da Educafro (Educação e Cidadania de Afrodescendentes e Carentes). “O funil das oportunidades é mais fechado para elas. Além disso, a mobilidade social é cheia de obstáculos. Muitas vezes, vivem em relacionamentos abusivos por dependência financeira. O empreendedorismo ajuda a sair disso”, explica.
A professora Márcia Lima, socióloga e professora da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, alerta para o que é, de fato, empreendedorismo. “Muitas vezes é só um nome bonito para informalidade. Mas, quando se fala em abrir negócios, o maior entrave para as mulheres negras é o acesso ao capital. São necessárias políticas públicas de linhas de crédito especiais para essa população”, defende. “O dinheiro está em instituições gerenciadas por homens brancos”, justifica Tati Brandão. “Mas estamos promovendo uma revolução silenciosa entre as mulheres negras por meio do empreendedorismo”, acrescenta.
Sem estereótipos
Nem as dificuldades de acesso a crédito param essas mulheres. No Dia Nacional da Consciência Negra, o Estado de Minas mostra a história de quatro mulheres negras que, lutando contra a barreira do racismo, montaram seus negócios e galgaram posições de liderança. Na contramão das estatísticas e — mais do que isso — dispostas a transformar os números, Maitê, Renata, Ítala e Rose romperam com o estereótipo da mulher negra que abre um negócio por necessidade: o empreendedorismo e a liderança estão em suas veias.
BlackRocks
A psicóloga paulistana Maitê Lourenço, 35 anos, criou, em 2010, um e-commerce de gestão de carreira. Ao buscar ferramentas de inteligência artificial em eventos de tecnologia e startups para automatizar o sistema, notou que não existiam pessoas negras nesses espaços. “Não me sentia representada. Não ver ninguém como eu me fez ter a certeza de que queria mudar esse paradigma”, conta.
Em 2015, Maitê fundou o BlackRocks, que, em 2016, passou a contar com toda a estrutura de aceleradora de negócios da população negra. “A nossa primeira ação foi de mentoria. Passei um ano fazendo o recrutamento de pessoas com expertise nas áreas de desenvolvimento, design, programação e negócios”, diz. Em 2017, conseguiu reunir 30 mentores e mentorados. Hoje, são 63. Desde então, mais de 2 mil pessoas passaram pelos programas de aceleração de startups, que apoiam os negócios iniciantes, buscando parceiros, investidores e patrocínios. “Cinco delas passaram. Uma começou do zero e já tem faturamento de R$ 25 mil. Agora, estamos em vias de fechar com uma grande empresa”, assinala.
Além de ser responsável pela pela primeira startup negra do país, o Black Rocks aumentou seu faturamento em 700% no ano passado. No entanto, Maitê ressalta que os obstáculos do racismo estão sempre presentes. “Um negócio liderado por negros é uma barreira para os patrocínios. O trabalho focado na população negra é um grande problema no país.”
ReConexões
A jornalista gaúcha Renata Lopes, 42, especialista em Gestão de Políticas Públicas de Gênero e Raça, se envolve com a temática racial desde sempre. Depois de cursar a faculdade, começou a perceber que faltava um referencial negro na mídia. “Há uma invisibilidade dos negros na comunicação. Ao fazer o trabalho de conclusão de curso, sobre a temática racial, o meu orientador era um homem branco, então já foi difícil”, recorda. Uma vez formada, Renata passou a editar várias publicações voltadas para a população negra. “Todas as notícias sobre negros são associadas à violência, à pobreza. Poucos profissionais negros são usados como fontes, embora existam economistas, médicos, advogados”, critica. “Quero mudar isso.”
Por meio das revistas ReConexões, Pretas e A coisa tá preta, Renata passou a contar histórias positivas, sobretudo de mulheres negras. “A coisa tá preta foi uma forma de transformar essa expressão em uma coisa positiva”, revela. “Mas temos dificuldades de patrocínio e anunciantes. Estamos batalhando pela sustentabilidade das publicações, mas precisamos mudar um paradigma. Por isso, ReConexões é um projeto que vai além da publicação e inclui eventos mensais em áreas como saúde, estética e educação”, conta. “O próximo já tem lista de espera. Nossa meta para 2020 é realizar as atividades em diferentes regiões”, projeta.
Vale do Dendê
A baiana Ítala Herta, 32, trabalha há 15 anos na área de inovação social e economia criativa. Em Salvador, a capital mais negra do país, a empreendedora passou por muitas organizações, como produtora independente, no movimento negro, em mídia étnica, até se transformar na co-fundadora da Vale do Dendê, uma consultoria e aceleradora de empreendimentos. Com mais três sócios, Ítala criou uma organização social com veia de negócios que pretende colocar Salvador no radar dos investimentos e de tecnologia. “Instalamos nosso escritório na estação da Lapa, onde passam mais de 500 mil pessoas por dia, com objetivo de fomentar a comunidade afro empreendedora”, conta.
Além de aceleradora de negócios de mulheres e jovens negros, a Vale do Dendê é uma escola de empreendedorismo e diversidade. “Estamos no quarto ciclo de aceleração e já temos resultados em negócios de tecnologia, moda, saúde e bem-estar, games, serviços com foco na população afro brasileira, plataformas digitais e aplicativos”, enumera. No último semestre, pré-acelerou 30 negócios, dos quais 10 foram aprovados para a fase de treinamento e facilitação.
Os números da empresa falam por si: mais de 30 mil pessoas acessaram a Vale do Dendê, 107 candidatos foram aprovados nos programas de aceleração, 30 projetos selecionados e mais de 90 parceiros. “É um modelo inovador, considera as vulnerabilidades da população negra, que sofre com falta de patrocínio, pouca maturidade dos negócios e nenhuma rede de contatos. O que a gente faz é conectar esses empreendimentos com potencial ao crédito ao capital-semente e às grandes empresas”, explica. “Nossa ambição é reposicionar Salvador como a capital mais criativa do país”, acrescenta.
Rede de proteção
A professora Rose Cipriano, 45, de Duque de Caxias (RJ), lutou para chegar ao magistério e hoje aproveita as aulas para criar uma rede de proteção para as mulheres negras da Baixada Fluminense. “Na rede pública, eu trabalho com alunos com necessidades especiais desde 2005. Mas comecei uma militância política há 10 anos, no Sepe (Sindicato Estadual de Profissional de Educação), quando passei a atuar no movimento de mulheres por meio de um coletivo”, conta.
Rose faz oficinas de empoderamento das mulheres negras. “Duque de Caxias está sempre entre as três cidades mais violentas para as mulheres do Rio de Janeiro. Nosso coletivo tem um viés pedagógico, que encaminha vítimas de violência para instituições, mas também orienta no sentido de gerar renda, de reduzir a dependência financeira por meio do empreendedorismo”, diz.
A liderança dentro da comunidade estimulou Rose a entrar para a política, sem deixar de lado a escola e, muito menos, a orientação às mulheres negras. “Fui candidata nas últimas eleições e tive 17 mil votos. Vou sair para vereadora no ano que vem”, revela. A plataforma de Rose: empoderamento da mulher negra, em especial da Baixada Fluminense.