Os relatos são chocantes. De flagrante desrespeito à condição do ser humano. Mas acontecem todos os dias. Sob o manto de uma aparente normalidade. Até que o pior acontece. E o “normal” passa a ser inaceitável. O caso do garoto Miguel Otávio Santana da Silva, 5 anos, que caiu do nono andar do condomínio de luxo conhecido como Torres Gêmeas, no Centro do Recife, expõe a forma como são tratadas as pessoas que fazem trabalhos domésticos no estado.
A lista de horrores inclui talheres e pratos separados, refeição diferenciada e de baixa qualidade, proibição de acesso a elevador, obrigatoriedade de uso de fardamento e de dormir na casa do empregador, assédio sexual, violência física e psicológica, serviços arriscados e, ainda, não suspensão do contrato de trabalho durante a pandemia do novo coronavírus.
A lista de horrores inclui talheres e pratos separados, refeição diferenciada e de baixa qualidade, proibição de acesso a elevador, obrigatoriedade de uso de fardamento e de dormir na casa do empregador, assédio sexual, violência física e psicológica, serviços arriscados e, ainda, não suspensão do contrato de trabalho durante a pandemia do novo coronavírus.
Quem chama a atenção para a situação dramática da categoria, formada majoritariamente por mulheres negras e com baixa escolaridade, é a pernambucana Luiza Batista, presidente da Federação das Trabalhadoras Domésticas. Ela própria vítima do trabalho doméstico infantil, invisibilizado até hoje e encarado, inclusive, como uma forma de salvar a criança pobre da miséria. Como se acesso à educação de qualidade não fosse o caminho. Aos nove anos, Luiza foi obrigada a cuidar de uma outra criança menor. Ao ser mordida pela menina, reagiu. Terminou espancada pela patroa. Até hoje, aos 63 anos, Luiza chora ao contar o caso.
“O caso de Miguel traz à tona a discussão sobre o racismo institucional. A chamada casa grande, mesmo em um momento de pandemia, não quer abrir mão da trabalhadora para ela ficar em casa com os filhos, já que as escolas estão fechadas. Mirtes, mãe de Miguel, teve que levar a criança para o trabalho. Você vê a irresponsabilidade da patroa. Se fosse o filho de uma pessoa amiga, ela jamais faria aquilo, colocaria o menino sozinho em um elevador. O racismo acontece nesse caso porque o menino era filho de uma mulher negra, doméstica, com baixo poder aquisitivo e escolaridade”, destaca Luiza.
A presidente da Federação lembrou que o próprio Ministério Público de Pernambuco (MPPE) considerou o trabalho doméstico não essencial em tempos de pandemia. “A medida provisória 936, do governo federal, também prevê a possibilidade de suspensão de contrato dessas pessoas. E isso não foi feito no caso de Mirtes. A patroa jamais poderia abrir mão da servidora para não estragar as unhas. Não se considera ocupando o papel de forrar cama, lavar pratos ou preparar o próprio alimento. Isso tudo é uma herança maldita do Brasil colônia.”
Em Olinda, na beira-mar, trabalhadores domésticos de um prédio com seis andares costumam usar a escada para chegar aos apartamentos onde prestam serviço ao invés do único elevador disponível. Uma moradora, uma universitária de 22 anos que pede para não ser identificada, conta que não há uma regra no condomínio sobre o assunto, mas alguns moradores determinam, por conta própria, que seus funcionários usem as escadas. “Sempre uso as escadas porque tenho medo de andar sozinha de elevador e vejo sempre a circulação dos trabalhadores. Inclusive, tinha uma que já era idosa e mesmo assim ela subia cada degrau.”
Luiza lembra que proibir o uso de elevador para trabalhadores domésticos é atitude discriminatória. “Não existe elevador social. Elevador é para pessoas. O de serviço é para carga, onde se recolhe lixo, se faz mudança. Mas sei de edifícios de luxo que insistem no elevador social e proíbem o acesso de trabalhadoras domésticas no espaço.”
Quanto ao uso de uniforme, Luiza destaca que a decisão deve ser tomada em consentimento com o trabalhador doméstico, que precisa se sentir bem com a roupa. Além disso, lembra, o valor da roupa não pode ser descontado no salário.
Outro relato ainda comum é a obrigação de dormir no emprego. “Aqui a cultura é a da servidão. Estou pagando e a pessoa tem que fazer do jeito que eu quero. O patrão pensa: não vou pagar para eu acordar cedo e ter que preparar meu desjejum.”
Essa ideia da servidão é tão impregnada na atitude do empregador que não há, sequer, preocupação com a saúde do trabalhador doméstico. E essa perspectiva fica escancarada em meio à pandemia. A mãe, Mirtes Souza, e a avó de Miguel, Marta Santana, inclusive, se contaminaram com a Covid-19, e teriam, segundo a família, permanecido à serviço da família de Sarí Côrte Real.
As noites dormidas no emprego também remetem à distância dos filhos e ao desconforto dos chamados quartos de empregada - construídos sem janelas e minúsculos. “A grande dor da trabalhadora doméstica é que a gente não acompanha o crescimento dos nossos filhos, não tem chance de sentar, conversar, orientar para que nossos filhos não se envolvam com algo errado”, reflete Luiza.