Há seis anos à frente do Sindicato dos Médicos de São Paulo (Simesp), o infectologista Eder Gatti Fernandes não imaginava lidar em sua gestão com os desafios ampliados pela pandemia. A maior batalha, sem dúvida, é travada nos hospitais, mas não são poucos os problemas enfrentados pelos profissionais de saúde, que vão de falta de equipamentos de proteção individual (EPIs) a contratos precários de trabalhos, passando por estresse e pressão psicológica.
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Invasão a hospitais choca profissionais da saúde no BrasilAras pede investigação de invasões a hospitais, mas deve isentar BolsonaroApós sugestão de Bolsonaro, deputados do Espírito Santo invadem hospitalApós ameaçar esposa com canivete, homem é morto com golpes de facão em BetimRio de Janeiro, São Paulo e Pará são os estados com mais baixas. No entanto, em Minas os profissionais também estão submetidos a alto grau de estresse.
“Com a pandemia, as situações adversas ficam muito escancaradas, tudo em um espaço curto de tempo”, afirma Fernandes. Na entrevista, ele afirma que a tragédia só não é maior no Brasil pelo amparo do Sistema Único de Saúde (SUS). Defende o isolamento social e critica o presidente Jair Bolsonaro, que sugeriu a apoiadores que entrem em hospitais para registrar se os leitos de tratamento da doença estão de fato ocupados. “O governo federal tem se mostrado cada vez mais omisso. Quando ele faz esse tipo de recomendação, desrespeita quem está nos hospitais trabalhando e dando duro para salvar vidas.”
Uma das queixas apresentadas por profissionais de saúde é a falta de equipamentos de proteção individual (EPIs). Ela é localizada ou afeta os médicos em todo o Brasil?
Esse é um problema que afeta médicos de todo o Brasil. Temos um problema sério causado pela COVID-19, que é a do fornecimento de equipamentos, de demanda expressiva. Mas também relacionado à estrutura local de saúde e isso varia muito de região para região. O Sistema Único de Saúde (SUS) nacionalmente passava por uma crise de financiamento, subfinanciado. Por conta disso, tem problemas na oferta de leitos, equipamentos, insumos e medicamentos. Entre os insumos, faltam equipamentos de proteção individual. Existe problema que é prévio e a gente sente muito agora.
Por que Rio de Janeiro, São Paulo e Pará estão entre os estados com mais mortes de médicos?
Primeiro, são três regiões que apresentam boa parte das mortes no Brasil. A maior casuística de COVID-19 é São Paulo. Temos muitos casos no Rio de Janeiro. Os locais onde acontece a maior quantidade de casos é que têm a maior quantidade de óbitos por profissionais de saúde. No último dado do semestre que a gente levantou, o estado 'campeão' era o Rio, até 22 de maio, mesmo não sendo o com mais casos de COVID. Ou seja, o risco de médicos falecerem estava sendo maior no Rio. Isso é reflexo da rede de saúde e da oferta de equipamentos de proteção individual.
É possível saber qual é o nível de estresse dos médicos que estão na linha de frente no enfrentamento à COVID-19? Como o estresse se relaciona ao risco de se contaminar pelo coronavírus?
Há várias coisas que podem estimular o estresse. O aumento da carga de trabalho foi significativo. Essa sobrecarga gera estresse. A outra coisa é lidar com doença em que o profissional se expõe e isso causa receio de contaminação. A gente começa a receber notícias de profissionais que falecem e isso causa muita preocupação. Essa crise evidenciou fragilidade no sistema de saúde. Uma delas, as relações de trabalho. Em vários locais há problemas. Em São Paulo temos realidade de profissionais que são da administração direta, mas concursados. Muitos no final de carreira e, consequentemente, idade mais avançada. Por conta dessa política de não fazer concurso, essas unidades da administração acabam tendo poucos profissionais mais jovens para a linha de frente. E há aquelas unidades administradas por organizações sociais, que terceirizam mão de obra de profissionais, muito frequente nos hospitais de campanha. Vínculos precários de trabalho. E esses profissionais são colocados na linha de frente da COVID, correndo risco de adoecer. Muitos adoecem e não têm nenhum direito trabalhista. O profissional é descartado, trocado por outro. Além de perder o posto de trabalho, fica doente em casa sem receber salário. A COVID escancarou a fragilidade das relações de trabalho na saúde.
A realidade da rede saúde no Brasil é bastante desigual entre regiões, dentro dos estados e nas próprias cidades. Quais são os pontos de maior preocupação?
O que destaca as fragilidades variáveis nas diferentes regiões é que algumas delas têm profissionais e leitos em maior quantidade. E justamente são essas regiões que carecem de profissionais que mais sofrem. O limiar de tolerância de ocorrência de COVID nessas regiões com menor acesso à assistência à saúde acaba sendo menor. Isso a gente pôde ver cidades da região Norte e Nordeste.
Qual a importância do Sistema Único de Saúde para o atendimento da população e tratamento da COVID-19? A resposta do SUS ao tamanho do desafio está sendo positiva?
A tragédia no Brasil só não foi maior por causa do sistema de saúde. O SUS minimamente garante algum acesso para as pessoas. Se não tivéssemos o SUS, certamente a tragédia seria muito maior, o risco de mortes muito mais alto. Muita gente ficaria sem assistência. Essa epidemia escancarou para a sociedade a importância que o SUS tem. Eu espero que o Brasil saia dessa epidemia com a lição de que o SUS precisa ser valorizado, precisa ter recursos para que funcione de maneira adequada e os gestores precisam, de fato, dar atenção para esse sistema, e não fazer como vinham fazendo antes da epidemia, sucateando cada vez mais o sistema de saúde, com financiamento cada vez menor.
O senhor considera uma boa medida as universidades de medicina anteciparem as formaturas para que os recém-formados possam se juntar à primeira fileira no combate à COVID-19?
Antecipar a formatura vai prover mais profissionais ao sistema de saúde. No entanto, nossa demanda maior é por profissionais que manejem terapia intensiva.
O quanto o isolamento social de maneira inadequada afeta o trabalho dos médicos?
A falta de isolamento social aumenta a ocorrência da doença e, consequentemente, a demanda pelo serviço de saúde e isso impacta no trabalho dos médicos. Porém, os governantes precisam dar apoio para as pessoas fazerem o isolamento social. Esse apoio passa por um discurso coerente das autoridades de que o isolamento é importante. E não é isso que a gente vê, uma vez que governos estaduais e municipais têm os discursos divergentes do federal. Esse tipo de comportamento não ajuda. Além de um discurso coerente, os governantes precisam dar o devido apoio para população aderir. O Brasil tem muitas famílias pobres, muitas cujos provedores vivem de empregos informais, e fazer isolamento é muito difícil para essas pessoas. O isolamento não é a única medida para reduzir a circulação da doença, mas é a mais impactante.
Qual sua avaliação sobre a declaração do presidente Jair Bolsonaro incentivando para que as pessoas entrem em hospitais para averiguar a capacidade dos leitos?
O presidente Jair Bolsonaro, ao fazer esse tipo de recomendação aos seus apoiadores, mostra-se extremamente irresponsável. Primeiro, porque estimula as pessoas a irem para ambiente hospitalar onde há pessoas doentes. Ele estimula a se exporem à doença. Além disso, o presidente até agora não fez nada de efetivo para combater a doença. O governo federal tem se mostrado, cada vez mais omisso e, em algumas vezes, até dá exemplos muito ruins à população, atrapalhando o combate à doença. Quando ele faz esse tipo de recomendação, ele desrespeita quem está de fato nos hospitais trabalhando e dando duro para salvar vidas de pessoas.
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