Mesmo com recordes de novos casos de covid-19 no Brasil e alto número de mortos pela doença, a pressão de setores econômicos e de alguns governantes parece ter se sobreposto às recomendações sanitárias no País.
Nas últimas semanas, a maioria dos estados anunciou planos de reabertura e, por mais que novas quarentenas não estejam descartadas, parte da população já retomou o trabalho presencial e atividades de compras e lazer, chegando a lotar vias de comércio popular, como a 25 de Março, em São Paulo, e até bares, como visto na cena que causou polêmica nesta semana no Leblon, zona sul do Rio.
Números da Inloco, empresa de tecnologia que fornece inteligência a partir de dados de localização e vem monitorando o índice de isolamento social em todos os Estados brasileiros, mostram que, na maioria das unidades da Federação, o porcentual de pessoas que estão reclusas vem caindo, chegando nos últimos dias à casa dos 30%, patamar similar ao registrado no início de março, antes do início das quarentenas. O comportamento contrasta com os números da doença.
Na última semana, o País registrou o segundo maior número de casos em 24 horas (47.984) desde o início da pandemia e teve mais de mil mortos diários durante quatro dias consecutivos. Até agora, mais de 1,5 milhão de brasileiros já foram contaminados, dos quais quase 64 mil morreram.
Ao contrário do que vem demonstrando a parcela menos cautelosa da população, o anúncio de reabertura não significa que se pode retomar a vida como se não houvesse coronavírus.
Para discutir as implicações das medidas de flexibilização e as medidas que devem ser adotadas pelas autoridades, empresas e cidadãos para minimizar o risco de contágio mesmo com menor isolamento, o Estadão ouviu especialistas das áreas de economia, gestão e medicina.
Eles foram unânimes em afirmar que o Brasil não se preparou adequadamente para a reabertura, mas ressaltaram que, dado que a medida já está em curso na maior parte do País, é preciso adotar novos hábitos para diminuir o risco de transmissão e evitar que a retomada econômica tenha como consequência uma tragédia humana.
Quanto às ações governamentais, dizem os especialistas, é fundamental que finalmente decole um programa mais robusto de testagem e rastreamento de casos suspeitos. Ele seria fundamental para definir quais localidades vão precisar de novas quarentenas.
1. A flexibilização no Brasil está sendo feita no momento certo, considerando o ainda alto número de casos e óbitos por COVID-19 no País?
Beatriz: Na pesquisa que fizemos na Universidade de Oxford, em parceria com a USP e a FGV, verificamos que as oito capitais brasileiras analisadas não cumpriam os critérios da Organização Mundial da Saúde (OMS) para reabrir. Entre esses critérios estão o controle da transmissão da doença a um nível de casos esporádicos, prevenção de novos surtos, adequações no ambiente de trabalho, entre outros. Estamos vendo que o Brasil está com um número de casos e mortes ainda muito alto e sem uma capacidade de testagem adequada.
Entre a população que a gente entrevistou, só 13% dos que tiveram sintomas conseguiram fazer o teste e o único fator que determinava maior propensão a fazer o teste dentre as pessoas com sintomas era ter renda maior de dez salários mínimos. O que a pesquisa revelou é que a questão da flexibilização é muito mais complexa do que atender ou não os critérios da OMS porque os custos de se manter essas medidas de distanciamento são muito maiores para os grupos mais vulneráveis da população, como trabalhadores informais e microempreendedores.
Os critérios para reabertura não são desenhados para as vulnerabilidades socioeconômicas específicas de cada cidade e de cada região. Então, por um lado, os critérios podem não ter sido atendidos, mas essa decisão de quando reabrir é realmente muito difícil, e muitos países ao redor do mundo flexibilizaram restrições antes de preencher tais critérios.
Raquel: É muito difícil falar em termos de País considerando nosso aspecto continental e o momento da pandemia em cada local. Pode ser que algumas capitais do Sudeste e do Norte que observam um controle ou diminuição no número de casos já estejam no momento certo para a flexibilização.
A decisão de fechar ou abrir é muito regional, mas o que me preocupa são metrópoles que já tiveram um pico de casos e que ficam muito próximas de cidades que estão vendo a curva subir só agora. Se você fecha uma e abre outra, isso pode levar a um descontrole nos números. Independentemente da flexibilização, devemos continuar tomando os cuidados para bloquear o vírus. Isso é responsabilidade de cada cidadão.
Angelo: Temos um processo de reabertura em meio à ascensão de casos. A diferença que vejo agora em comparação com meses atrás é que as condições de sustentação hospitalar estão melhor equacionadas. Acho que depois de todo o desarranjo político que vivemos, esse processo de reabertura não tem volta. Não teremos um lockdown geral. O que acredito que vá existir é o fechamento seletivo de algumas regiões e a suspensão de algumas operações dependendo da evolução da pandemia. O que não pode é essa reabertura comunicar a ideia de que os problemas já passaram.
2. O País se preparou para reabrir com segurança? Quais adaptações devem ser feitas?
Angelo: Não nos preparamos de forma adequada, mas isso teve a ver mais com questões políticas do que propriamente com questões sanitárias. Quando a pandemia nos atingiu, já sabíamos da doença, não foi uma surpresa, mas demoramos muito a ter uma ação razoavelmente concentrada. É como se estivéssemos em uma guerra em que os principais generais não achassem um denominador comum. Quanto às empresas, costumo dizer que nada ensina mais do que o bolso. A angústia com esses prejuízos econômicos é muito grande, então a maioria dos comércios está tentando se ajustar às medidas de segurança para que possa atrair novamente clientes de forma segura.
Beatriz: Quanto aos locais de trabalho, analisamos na pesquisa quão preparados eles estavam para essa reabertura, ou seja, se eles tinham implementado medidas específicas, como mudar a posição de mesas e cadeiras para permitir distanciamento. Em uma grande parte isso não aconteceu.
Raquel: Do ponto de vista dos locais de trabalho, precisamos melhorar as medidas que permitam o distanciamento social, ter ambiente ventilado, o que vai ser um desafio porque as estruturas modernas foram construídas mais fechadas, por causa do ar-condicionado. Precisaremos ter maior planejamento do espaço físico, sempre trabalhar com máscara, ter álcool em gel disponível e alguma forma de inquérito diário do empregador sobre eventuais sintomas do funcionário e da sua família.
O entendimento dos chefes e supervisores quanto a ter um trabalhador com sintomas respiratórios vai ter de mudar. É uma nova visão, uma nova consciência. Essa adaptação do espaço físico vai ter de ser feita para áreas comuns das empresa também, como refeitórios. Talvez as pausas e intervalos tenham de ser escalonados para não formar aglomerações. A higienização dos ambientes terá de ser muito mais frequente.
3. O que o País deve fazer a partir de agora para minimizar o risco de a flexibilização levar a uma explosão de casos?
Beatriz: É importante fazer o controle dos novos casos, ou seja, fazer com que todo mundo que tenha sintomas a partir de agora seja testado e, se positivo, seja isolado e tenha seus contatos monitorados. Aqui na Europa há um debate acirrado sobre como rastrear contatos para que se consiga realmente identificar todo mundo e isolar. Não vejo esse debate ser feito na mesma intensidade no Brasil.
Mas por mais que não tenhamos feito isso ainda, esse programa pode ser implantado a partir de agora e é importante que seja colocado em prática em um momento de flexibilização justamente para sabermos os locais onde o vírus está em curva ascendente e talvez pensar em medidas específicas para cada localidade. Aqui no Reino Unido estão trabalhando com o conceito de lockdowns localizados de acordo com a evolução da pandemia em cada região.
Raquel: A efetividade do rastreamento e de testar o maior número de pessoas é inquestionável. Se não der para testar todo mundo, que se faça pelo menos teste nas pessoas com sintomas e em seus contatos.
4. Em termos individuais, o que as pessoas devem fazer para se proteger nesta reabertura?
Raquel: Há um estudo recente, publicado em maio, que analisou as curvas da epidemia em Wuhan, Nova York e Itália demonstrando que o uso de máscara para toda a população foi o fator mais determinante para fazer a curva de casos cair. Isso somado ao distanciamento social e à higienização das mãos. Mas não adianta máscara se você usá-la no queixo, se ficar tocando nela toda hora sem higienizar as mãos e se não trocá-la de tempos em tempos.
Além disso, mesmo com o comércio aberto, tente sair apenas se precisar. Cada um tem de se sentir responsável pela sua saúde e pela saúde das outras pessoas. A vacina não vai chegar para o nosso inverno e ainda não temos tratamento efetivo contra a covid-19.
Angelo: O ideal é que a pessoa otimize as idas aos comércios comprando mais coisas de uma vez para não se expor várias vezes.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.
Nas últimas semanas, a maioria dos estados anunciou planos de reabertura e, por mais que novas quarentenas não estejam descartadas, parte da população já retomou o trabalho presencial e atividades de compras e lazer, chegando a lotar vias de comércio popular, como a 25 de Março, em São Paulo, e até bares, como visto na cena que causou polêmica nesta semana no Leblon, zona sul do Rio.
Números da Inloco, empresa de tecnologia que fornece inteligência a partir de dados de localização e vem monitorando o índice de isolamento social em todos os Estados brasileiros, mostram que, na maioria das unidades da Federação, o porcentual de pessoas que estão reclusas vem caindo, chegando nos últimos dias à casa dos 30%, patamar similar ao registrado no início de março, antes do início das quarentenas. O comportamento contrasta com os números da doença.
Na última semana, o País registrou o segundo maior número de casos em 24 horas (47.984) desde o início da pandemia e teve mais de mil mortos diários durante quatro dias consecutivos. Até agora, mais de 1,5 milhão de brasileiros já foram contaminados, dos quais quase 64 mil morreram.
Ao contrário do que vem demonstrando a parcela menos cautelosa da população, o anúncio de reabertura não significa que se pode retomar a vida como se não houvesse coronavírus.
Para discutir as implicações das medidas de flexibilização e as medidas que devem ser adotadas pelas autoridades, empresas e cidadãos para minimizar o risco de contágio mesmo com menor isolamento, o Estadão ouviu especialistas das áreas de economia, gestão e medicina.
Eles foram unânimes em afirmar que o Brasil não se preparou adequadamente para a reabertura, mas ressaltaram que, dado que a medida já está em curso na maior parte do País, é preciso adotar novos hábitos para diminuir o risco de transmissão e evitar que a retomada econômica tenha como consequência uma tragédia humana.
Quanto às ações governamentais, dizem os especialistas, é fundamental que finalmente decole um programa mais robusto de testagem e rastreamento de casos suspeitos. Ele seria fundamental para definir quais localidades vão precisar de novas quarentenas.
1. A flexibilização no Brasil está sendo feita no momento certo, considerando o ainda alto número de casos e óbitos por COVID-19 no País?
Beatriz: Na pesquisa que fizemos na Universidade de Oxford, em parceria com a USP e a FGV, verificamos que as oito capitais brasileiras analisadas não cumpriam os critérios da Organização Mundial da Saúde (OMS) para reabrir. Entre esses critérios estão o controle da transmissão da doença a um nível de casos esporádicos, prevenção de novos surtos, adequações no ambiente de trabalho, entre outros. Estamos vendo que o Brasil está com um número de casos e mortes ainda muito alto e sem uma capacidade de testagem adequada.
Entre a população que a gente entrevistou, só 13% dos que tiveram sintomas conseguiram fazer o teste e o único fator que determinava maior propensão a fazer o teste dentre as pessoas com sintomas era ter renda maior de dez salários mínimos. O que a pesquisa revelou é que a questão da flexibilização é muito mais complexa do que atender ou não os critérios da OMS porque os custos de se manter essas medidas de distanciamento são muito maiores para os grupos mais vulneráveis da população, como trabalhadores informais e microempreendedores.
Os critérios para reabertura não são desenhados para as vulnerabilidades socioeconômicas específicas de cada cidade e de cada região. Então, por um lado, os critérios podem não ter sido atendidos, mas essa decisão de quando reabrir é realmente muito difícil, e muitos países ao redor do mundo flexibilizaram restrições antes de preencher tais critérios.
Raquel: É muito difícil falar em termos de País considerando nosso aspecto continental e o momento da pandemia em cada local. Pode ser que algumas capitais do Sudeste e do Norte que observam um controle ou diminuição no número de casos já estejam no momento certo para a flexibilização.
A decisão de fechar ou abrir é muito regional, mas o que me preocupa são metrópoles que já tiveram um pico de casos e que ficam muito próximas de cidades que estão vendo a curva subir só agora. Se você fecha uma e abre outra, isso pode levar a um descontrole nos números. Independentemente da flexibilização, devemos continuar tomando os cuidados para bloquear o vírus. Isso é responsabilidade de cada cidadão.
Angelo: Temos um processo de reabertura em meio à ascensão de casos. A diferença que vejo agora em comparação com meses atrás é que as condições de sustentação hospitalar estão melhor equacionadas. Acho que depois de todo o desarranjo político que vivemos, esse processo de reabertura não tem volta. Não teremos um lockdown geral. O que acredito que vá existir é o fechamento seletivo de algumas regiões e a suspensão de algumas operações dependendo da evolução da pandemia. O que não pode é essa reabertura comunicar a ideia de que os problemas já passaram.
2. O País se preparou para reabrir com segurança? Quais adaptações devem ser feitas?
Angelo: Não nos preparamos de forma adequada, mas isso teve a ver mais com questões políticas do que propriamente com questões sanitárias. Quando a pandemia nos atingiu, já sabíamos da doença, não foi uma surpresa, mas demoramos muito a ter uma ação razoavelmente concentrada. É como se estivéssemos em uma guerra em que os principais generais não achassem um denominador comum. Quanto às empresas, costumo dizer que nada ensina mais do que o bolso. A angústia com esses prejuízos econômicos é muito grande, então a maioria dos comércios está tentando se ajustar às medidas de segurança para que possa atrair novamente clientes de forma segura.
Beatriz: Quanto aos locais de trabalho, analisamos na pesquisa quão preparados eles estavam para essa reabertura, ou seja, se eles tinham implementado medidas específicas, como mudar a posição de mesas e cadeiras para permitir distanciamento. Em uma grande parte isso não aconteceu.
Raquel: Do ponto de vista dos locais de trabalho, precisamos melhorar as medidas que permitam o distanciamento social, ter ambiente ventilado, o que vai ser um desafio porque as estruturas modernas foram construídas mais fechadas, por causa do ar-condicionado. Precisaremos ter maior planejamento do espaço físico, sempre trabalhar com máscara, ter álcool em gel disponível e alguma forma de inquérito diário do empregador sobre eventuais sintomas do funcionário e da sua família.
O entendimento dos chefes e supervisores quanto a ter um trabalhador com sintomas respiratórios vai ter de mudar. É uma nova visão, uma nova consciência. Essa adaptação do espaço físico vai ter de ser feita para áreas comuns das empresa também, como refeitórios. Talvez as pausas e intervalos tenham de ser escalonados para não formar aglomerações. A higienização dos ambientes terá de ser muito mais frequente.
3. O que o País deve fazer a partir de agora para minimizar o risco de a flexibilização levar a uma explosão de casos?
Beatriz: É importante fazer o controle dos novos casos, ou seja, fazer com que todo mundo que tenha sintomas a partir de agora seja testado e, se positivo, seja isolado e tenha seus contatos monitorados. Aqui na Europa há um debate acirrado sobre como rastrear contatos para que se consiga realmente identificar todo mundo e isolar. Não vejo esse debate ser feito na mesma intensidade no Brasil.
Mas por mais que não tenhamos feito isso ainda, esse programa pode ser implantado a partir de agora e é importante que seja colocado em prática em um momento de flexibilização justamente para sabermos os locais onde o vírus está em curva ascendente e talvez pensar em medidas específicas para cada localidade. Aqui no Reino Unido estão trabalhando com o conceito de lockdowns localizados de acordo com a evolução da pandemia em cada região.
Raquel: A efetividade do rastreamento e de testar o maior número de pessoas é inquestionável. Se não der para testar todo mundo, que se faça pelo menos teste nas pessoas com sintomas e em seus contatos.
4. Em termos individuais, o que as pessoas devem fazer para se proteger nesta reabertura?
Raquel: Há um estudo recente, publicado em maio, que analisou as curvas da epidemia em Wuhan, Nova York e Itália demonstrando que o uso de máscara para toda a população foi o fator mais determinante para fazer a curva de casos cair. Isso somado ao distanciamento social e à higienização das mãos. Mas não adianta máscara se você usá-la no queixo, se ficar tocando nela toda hora sem higienizar as mãos e se não trocá-la de tempos em tempos.
Além disso, mesmo com o comércio aberto, tente sair apenas se precisar. Cada um tem de se sentir responsável pela sua saúde e pela saúde das outras pessoas. A vacina não vai chegar para o nosso inverno e ainda não temos tratamento efetivo contra a covid-19.
Angelo: O ideal é que a pessoa otimize as idas aos comércios comprando mais coisas de uma vez para não se expor várias vezes.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.