Leandro Couri (texto e fotos)
Enviado especial
Chapada dos Veadeiros/Cavalcante (GO) – Sob a sombra da pandemia, fazendeiros e prefeito de uma cidade goiana são acusados de devastar milhares de hectares de mata nativa de cerrado na região da Chapada dos Veadeiros, no estado vizinho a Minas, incluindo parte de uma área no maior quilombo do Brasil, o Kalunga, com 262 mil hectares. Somente entre os meses de maio e junho, a Secretaria de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável (Semad) de Goiás confirmou o desmatamento de mais de 2 mil hectares, em 25 pontos. Porém, comunidades tradicionais e organizações não governamentais dizem que o estrago pode ser muito maior.
Estudo publicado este mês na revista Science identificou que um quinto das exportações de soja da Amazônia e do cerrado brasileiro à União Europeia tem a mancha do desmatamento ilegal. O dado se reflete em flagrantes como os registrados nesta reportagem em Cavalcante, no Nordeste de Goiás. Integrantes da comunidade local denunciam que, aproveitando-se de um momento em que quase toda a atenção da sociedade se voltou para a saúde, desmatadores começaram a agir com maior intensidade, usando tratores, correntes, esteiras, motosserras, fogo, causando todo tipo de degradação.
Lideranças também apontam que, devido à demora na titulação das terras – demarcadas desde 2009, mas que ainda esperam desapropriação pelo governo federal –, os crimes têm se intensificado. “Principalmente após fala do ministro”, atesta um quilombola local, referindo-se a Ricardo Salles, do Meio Ambiente. Em reunião ministerial com presença do presidente Jair Bolsonaro, cujo conteúdo foi divulgado pela Justiça, o titular da pasta indica que o momento em que a atenção da imprensa está voltada para a pandemia é um “alívio” e uma oportunidade para “passar as reformas infralegais de desregulamentação”.
“Então, para isso precisa ter um esforço nosso aqui, enquanto estamos nesse momento de tranquilidade no aspecto de cobertura de imprensa, porque só fala de COVID, e ir passando a boiada e mudando todo o regramento e simplificando normas. De Iphan (Instituro do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), de Ministério da Agricultura, de Ministério de Meio Ambiente, de ministério disso, de ministério daquilo. Agora é hora de unir esforços pra dar de baciada a simplificação”, conclui Ricardo Salles, aparentemente tratando de regras da administração federal que independem de apreciação pelo Congesso Nacional.
Coincidência ou não com a fala ministerial, descendentes de escravos e moradores do quilombo Kalunga denunciam o aumento do abuso de invasores e de fazendeiros em suas terras nos últimos meses. Para eles, a expressão “passando a boiada”, usada pelo titular com meio ambiente, foi interpretada como um estímulo a atividades de desmatamento ilegais dentro de terras demarcadas, que possuem áreas ainda em processo de desapropriação.
Prefeito atuava com ‘aval do município’
Diante da situação denunciada por moradores, nos últimos dois meses a Secretaria de Meio Ambiente de Goiás fez pelo menos duas diligências no município de Cavalcante para apurar desmatamento em território da Chapada dos Veadeiros. Na última incursão, uma autuação foi feita contra o prefeito Josemar Saraiva Freire (PSB-GO), multado em R$ 183 mil, e que ainda teve apreendidos dois tratores. A irregularidade apontada foi o desmatamento de 270 hectares por meio do processo de esteira, que dilacera a vegetação em segundos. Durante a abordagem, trabalhadores mostraram uma autorização municipal para fazer limpeza de pasto.
Afirmando que a acusação não procede, ela sustenta não poder “compactuar com o crime ambiental, com o desmatamento de grandes áreas, sem licença”. “E, o que é pior no caso do prefeito: ele utilizou uma licença concedida pelo município de forma absolutamente ilegal. Como agente público, pegou sua estrutura de governo para benefício próprio”, alertou. “Vejam bem: 270 hectares de área desmatada é muito grande, sendo 35 hectares em terra pública, e o prefeito sabe disso. Além disso, os produtores rurais não conseguem suas licenças locais”, relata.
Procurado pela reportagem do jornal Estado de Minas, o prefeito preferiu não se manifestar sobre o assunto, limitando-se a dizer, em conversa via WhatsApp sobre a acusação de desamate ilegal: “Para começo de conversa, minha propriedade não está localizada na Chapada dos Veadeiros”.
Na sequência, Josemar Freire procurou classificar como tema sem importância o que a Semad/GO qualificou como crime ambiental: “Rapaz, esse caso já ‘tá’ velho, procura outra coisa, moço”. Em seguida, o prefeito bloqueou o contato e não mais atendeu ligações, embora vários meios tivessem sido colocados à disposição para que se posicionasse.
Em outra área da mesma região, na mesma diligência, perto do Rio São Félix, na cabeceira do Rio Prata, foram encontrados pontos de extração de ouro e manganês, de uma empresa, que não teve o nome divulgado. Onze máquinas foram apreendidas no local, incluindo dragas e tratores.
Correntão e fogo consomem mata
Denúncias de que, somente entre maio e junho, mais de mil hectares foram arrancados ilegalmente no município de Cavalcante, com justificativas e documentos questionáveis, levaram à cidade do Nordeste goiano fiscais da Semad/GO. Em vistorias a duas fazendas, registraram desmatamento de vegetação nativa em “região de abrangência de unidades de conservação da natureza e territórios tradicionais”.
Com o apoio da Delegacia Estadual de Repressão a Crimes contra o Meio Ambiente, da Polícia Civil, equipes apontaram possíveis irregularidades nas duas propriedades. Na primeira foram mapeados 15 polígonos, totalizando 475 hectares suprimidos. A Semad entendeu que as áreas tiveram ocorrência recente de fogo, “uma prática maliciosa para ir deitando o cerrado”, como explica um guia local. O proprietário foi apenas advertido.
Já na segunda propriedade, a Fazenda Alagoas, foram identificados 527 hectares de desmatamento em duas áreas. Segundo o relatório de fiscalização ambiental, ao qual a reportagem teve acesso, foi possível verificar árvores deitadas, com folhagem ainda verde, “o que evidencia a utilização recente da técnica de desmatamento utilizando cabo/correntão tracionado por tratores”. Uma referência a um método agressivo que consiste na derrubada de mata feita por dois tratores que, andando em linhas paralelas e com uma corrente presa entre eles, arrancam tudo ao redor.
O documento cita ainda outras evidências, como o solo “raspado” por máquina agrícola e outras áreas com supressão. “Em outra área de 1,0209 ha também foi realizada a raspagem do solo para depósito de calcário, que segundo o funcionário, seria utilizado para correção do solo, e já haveria no local aproximadamente 300 toneladas”. Na sede da fazenda, também foram identificadas irregularidades. “Na estrada vicinal de acesso à sede da fazenda, após a placa e porteira, observou-se a supressão vegetal numa área de 1,6267ha, que incluiu o corte/destoca de 24 árvores, pela passagem de maquinário, visando ao alargamento da via de acesso”.
A atuação encerra ordenando o embargo total das atividades na fazenda, e multa de quase R$ 6 milhões. “Após a análise e mensuração remota tendo como subsídios imagens de satélite recentes, análise de bases e processos e verificação in loco para confirmação da ocorrência denunciada de desmatamentos na Fazenda Alagoas, inicialmente foram lavrados os autos de infração e os termos de embargo apresentados”, diz trecho do procedimento. “Após análise de agravantes considerando os dados e insumos coletados em campo, bem como a verificação e confirmação de que a área onde ocorreram os desmatamentos incide totalmente sobre o Território Quilombola Kalunga, foram lavrados os autos de infração e termos de embargo”, conclui.
Documentos apresentados por funcionário da Fazenda Alagoas, segundo a autuação, eram incompatíveis com o que foi encontrado e podem caracterizar fraude. Nenhum deles, conforme as autoridades, permitiria o desmatamento do cerrado, menos ainda o uso do chamado correntão. Procurados pelo Estado de Minas para se manifestar sobre o assunto, nenhum representantes da Fazenda Alagoas foi encontrado ou retornou os contatos deixados em Cavalcante, até o fechamento desta edição. Das autuações cabem recursos.
Quilombo Kalunga: o alvo das invasões
Considerado um dos maiores do Brasil, o quilombo Kalunga, em Goiás, é também um dos mais preservados. Porém, associações locais e a comunidade turística de Cavalcante denunciam o aumento de ocorrências de devastação, confirmadas pelas dezenas de autuações.
Nos últimos anos, com a melhora das estradas, foi que se observou o aumento da ousadia dos infratores. “A solução é estarmos atentos e usar nossas redes sociais, celular, para denunciar esse tipo de coisa. Antes de ter estrada pra cá, ninguém invadia o território assim, não. Depois que construíram estradas, facilitando o acesso, foi que surgiram várias propriedades, vários 'donos'. É preciso mobilizar, contar com pessoas que amam o meio ambiente e que estão dispostos a preservar todos os povos tradicionais deste país, deste mundo”, afirma Geovan dos Santos Oliveira, da Associação Quilombola Kalunga Engenho 2.
Para grupos que vivem do turismo e da preservação da cultura local, a lentidão do processo de desapropriação e titulação das terras quilombolas é programada e tem por objetivo “ganhar tempo para abrir brechas em leis já estabelecidas”, aponta um integrante do Conselho Municipal de Turismo de Cavalcante, que prefere o anonimato. A entidade publicou manifesto pedindo o embargo de todas as obras em áreas da Chapada dos Veadeiros, e agilidade no processo de reconhecimento de toda a extensão do território quilombola.