De braços dados, dezenas de ditos religiosos fazem oração em frente à unidade de saúde antes de tentar invadi-la forçando portas de vidro à força. Gritam “assassino” e rogam pela vida, querendo exigir que uma criança de 10 anos, estuprada pelo tio, termine de gestar um feto, mesmo que isso lhe custe a sua. As múltiplas violências registradas na tarde deste domingo (16), em frente a um hospital do Recife, não são novidade para o diretor médico e obstetra Olímpio Moraes Filho, “excomungado duplamente” pela Igreja Católica, uma delas por fazer o mesmo procedimento, com assustadora semelhança, mas numa menina de 9 anos de Alagoinha, no interior de Pernambuco, também estuprada, mas então grávida de gêmeos.
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A primeira vez que foi excomungado (e, para efeitos práticos, a “definitiva e não midiática”) foi por se envolver - e acabar sendo apontado como responsável - pela campanha de controle de natalidade da secretaria de saúde durante o carnaval de Pernambuco em 2006. Naquele ano, o governo passou a distribuir a chamada “pílula do dia seguinte” gratuitamente, para a população. A ousadia de impedir gravidezes indesejadas e evitar previamente abortos clandestinos lhe rendeu a punição máxima no rito cristão católico.
Não fosse o bastante, em 2008, no caso que mais evidenciou sua carreira, soube pela TV de uma menina de 9 anos levada ao Recife grávida do padrasto. Com pressão de todos os lados, unidades de saúde da capital pernambucana iam desistindo de realizar o procedimento, temendo o fim das doações de revoltados donos de bolsos fundos que “não contribuiriam para hospital aborteiro”. Por telefone, combinou um carro escondido para levar a garota ao Cisam, o Centro Integrado de Saúde Amaury de Medeiros, ligado à Universidade de Pernambuco, o qual dirige até hoje. A unidade foi a segunda do país a ser autorizada a promover abortos legais e, desde 1996, recebe pacientes de vários estados brasileiros para realizar os procedimentos amparados na lei, que o prevê em caso de risco de morte da mãe, estupro ou anencefalia do feto.
Autorizou o procedimento na mesma noite. Por semanas, estampava o noticiário tendo o nome completo repudiado até pela Arquidiocese de Olinda e Recife. O arcebispo, então dom José Cardoso Sobrinho bradava “quando a lei dos homens é contrária à lei de Deus, esta lei não tem valor”, ao excomungar novamente aquele que a própria Igreja Católica já não considerava dos seus, dado o “vil” procedimento; pautado na ciência e no direito, em nome da integridade de uma menina de 1m32, 36 kg, à qual muitos queriam impor suportar a maternidade que não lhe cabia.
Hoje, aos 57 anos, ele continua tendo como um de seus mantras profissionais as palavras do ex-presidente da Federação Internacional de Ginecologia e Obstetrícia Mahmoud Fathalla, que dizia: “as mulheres não morrem porque sua doença não pode ser tratada; elas estão morrendo porque as sociedades ainda não tomaram a decisão que suas vidas devam ser salvas” - frase que utilizou mais de uma vez em artigos e palestras. Foi ele quem acompanhou o protocolo e, mais uma vez, se viu vítima de repúdio religioso. Não é ele quem ministra o medicamento, mas sua caneta é a que dá o sinal verde - para muitos, esse é seu pecado.
Nesta segunda-feira (17), como no episódio registrado há 12 anos, voltou a usar os veículos de comunicação para criticar os profissionais de saúde que fazem cumprir a lei. "Decepciona-nos perceber que ainda existam profissionais de saúde que se prestam à prática do aborto. Este ato, mesmo com autorização judicial, não deve ser feito por uma pessoa de fé ou até incrédula consciente, por uma questão de respeito à Lei de Deus ou simplesmente por princípio ético, baseado no valor inviolável da vida", declarou o atual arcebispo de Olinda e Recife, dom Fernando Saburido.
Criado por família católica, Olímpio Moraes hoje se diz agnóstico, mas nem críticas, nem excomunhão pesam em sua consciência, crédula apenas de seu dever. As semelhanças com o passar do tempo são diversas, mas, segundo o médico, a realidade e pressão, agora, são piores. "Antes eu tinha que lidar apenas com o arcebispo, agora, também tenho que lidar com os políticos; a bancada religiosa praticamente não existia e agora fazem uma pressão mais sentida. A realidade só tem piorado", garante, por telefone, no Recife. Questionado sobre a possibilidade de mais uma excomunhão, numa espécie trindade às avessas, o obstetra dá de ombros, como quem pega emprestado dose extra de paciência: "minha preocupação é apenas a de fazer o certo".