Jornal Estado de Minas

"O fogo é sagrado e não pode ser usado de forma errada", diz educadora pataxó



Lágrimas não apagam incêndios, mas podem muito bem clarear ideias, irrigar consciências e abrir espaço até entre pedras brutas para buscar a preservação ambiental. É pensando assim que Maria Aparecida Costa de Oliveira não tem poupado o choro para lutar contra uma ameaça, o fogo, que já a surpreendeu várias vezes no sítio onde vive, no Bairro Bonanza, localizado a 5 quilômetros do Centro Histórico de Santa Luzia, na Região Metropolitana de Belo Horizonte. Reclusa devido à pandemia do novo coronavirus, ela usa as redes sociais para pedir que as pessoas parem de maltratar a natureza, deixem os bichos em paz e sepultem de vez a prática de queimar o mato. “O fogo é sagrado, não pode ser usado de forma errada”, acredita.



Bem na entrada do sítio, numa rua “coincidentemente” chamada Amazonas, o convite para entrar está na língua patxohã, falada pelo povo pataxó ao qual Maria pertence. “Acho que tenho 54 anos. Não sei direito, pois fui registrada com 'nome de branco' aos 10. Meu nome indígena é Txahá Xohã, que significa Flor Guerreira. Então, pode me chamar de Maria Guerreira”, diz a mulher de voz firme e suave, dando as boas vindas – Taputá Tometô – à “minha casa” ou Kijeme. No espaço doméstico, tudo é aproveitado e reaproveitado, do pequenino galho que despenca da árvore às folhas transformadas em adubo. Não é à toa que ela mesma fez o estrado da sua cama com madeira do quintal. “Pode levantar o colchão para você ver”, indica ao repórter.

Com a máscara protetora feita à mão contra o novo coronavírus e com penas no cabelo, um costume do qual nunca se separou, Maria faz questão de mostrar cada palmo do seu chão, onde viveu com o marido Saulo Filardi, falecido em 2012, e criou dois filhos, Saulo e Edson Augusto. “Chegamos há quase 40 anos, gosto muito daqui e da cidade. Conheço o angico, o cedro, o jequitibá-rosa, o ipê-amarelo. Tudo faz parte da nossa história. Vejo o sol, a lua, as estrelas, as borboletas, os passarinhos. Quer riqueza maior?”, conta ao percorrer o terreno. No passeio pelo quintal, no entanto, sobressaem vários troncos queimados, marcas que ficaram e preocupam. “Há seis anos, o fogo alastrou e chegou aqui no quintal. Foi um horror.”

Nos últimos dias, a dor de ver as labaredas dominando a terra voltou redobrada. “Fiquei com vontade de ir embora, procurar outro lugar. Mas aí penso que tenho tanto amor pelo bairro, pelas árvores que vi crescendo em muitas avenidas, pela cidade que se transformou em quase 40 anos e acho melhor ficar. E lutar com as armas que tenho, as palavras, e da forma que possa ser ouvida, as redes sociais”, explica. Entre os planos de agora, está uma representação no Ministério Público para denunciar as queimadas, que podem começar no lixo do quintal e se propagar bairro adentro, “ainda mais neste mês que venta mais”.



Traços
Enquanto conversa e vai contando sua história, Maria solta os cabelos muito pretos e coloca sobre eles um cocar de penas de papagaio e arara. Depois, pinta o rosto de vermelho, realçando os olhos com urucum e trazendo à flor da pele os traços de identidade de seu povo. Depois, tomada pela emoção, ela segue em silêncio até uma frondosa sete cascas e abraça ternamente o tronco queimado. As mãos ficam marcadas pelo carvão, e Maria leva os dedos ao rosto misturando as cores. “É sinal de luto”, resume, antes de fazer um carinho no cedro, também com a casca queimada.

Natural de Medeiros Neto, no Sul da Bahia, Maria nasceu “no mato”, conforme diz, e depois foi com os pais percorrer fazendas para o trabalho nas lavouras. Pelas voltas que o mundo dá, veio para Belo Horizonte, casou-se e foi morar no sítio em Santa Luzia. “Um dia, meu marido falou que eu não precisava estudar, pois ele sabia o suficiente pra nós dois”, conta a indígena pataxó que, fazendo valer o significado do seu nome, Maria Guerreira, deu a resposta passando no vestibular da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e cursou ciências sociais, dedicando-se, a partir da graduação em 2013, a dar palestras em espaços de educação para todo tipo de público e faixas etárias. Com um sorriso discreto, lembra que depois o marido se redimiu e deu força aos estudos.

Na tarde de ontem, com o belo pôr- do-sol colorindo o contorno da paisagem num tom rosa forte, era possível sentir o cheiro de queimado no ar. E, assim, um post da indígena pataxó, serviu de legenda perfeita para o cenário. “Quem ama a vida e quer deixar uma herança para seus filhos e netos cuida da natureza e não faz queimada. Quem faz queimada não passa de um desgraçado egoísta, desalmado, ignorante, que não compreende que a queimada deixa a terra estéril, destrói a vegetação, é prejudicial a toda a espécie de vida, inclusive para a nossa. As partículas de fumaça emitidas prejudicam a vida”.



Depois de apresentar o quintal, Maria mostra que sua cultura está sempre viva no corpo e no coração. Ainda com o cocar do povo pataxó, ressalta que fala sempre pelo celular ou pela internet com os amigos pataxós de Carmésia, no Vale do Rio Doce, e de Barra Velha (BA). “Fico feliz ao saber que a produção agrícola está indo bem, que há troca de produtos entre indígenas e pescadores baianos e sobre a presença de muitos professores indígenas nas aldeias”. A visita ao sítio de Txahá Xohã, a Flor Guerreira, é boa oportunidade para conhecer mais sobre os indígenas de Minas.

Campanhas


Segundo a Secretaria Municipal de Meio Ambiente, Agricultura e Abastecimento, a Prefeitura de Santa Luzia realiza, de forma rotineiras, campanhas educativas para conscientizar a população, em especial durante o período de seca. Algumas dessas ações são feitas em parceria com a Defesa Civil Municipal e o Instituto Estadual de Florestas (IEF). Em nota, a assessoria da prefeitura informa que, quando identificada uma queimada de pequeno porte, como por exemplo, uma queima de lixo, o autor é notificado e autuado, de acordo com o Código de Posturas do município.