Jornal Estado de Minas

COVID-19

Segunda Revolta da Vacina? As lições históricas da crise de 1904


Impossível se vacinar contra a polêmica, ainda mais nestes tempos de pandemia, com suas doses descomunais de incertezas, medos, choque de opiniões, afirmações com ou sem base científica e outros fatores de alto risco para a população. As recentes declarações do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) de que a imunização não será obrigatória e de que o governo federal não comprará a CoronaVac, imunizante contra a COVID-19 elevam a temperatura nas discussões. E alimentam uma polêmica que já ganha as ruas e redes sociais, trazendo à memória episódio marcado na história da saúde pública brasileira, uma espécie de "segunda revolta da vacina".



Do lado oposto ao do presidente e de quem advoga a não obrigatoriedade da vacinação, o governador de São Paulo, João Doria, quer o povo do seu estado recebendo as doses, compulsoriamente, se preciso. Guardadas as devidas proporções de tempo, espaço e tensão, a situação traz à tona o episódio que sacudiu no início do século passado o Rio de Janeiro, então capital da República.

Quem explica o contexto no qual ocorreu a Revolta da Vacina é a pesquisadora da Casa de Oswaldo Cruz, unidade especializada em memória e história em saúde da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), Tania Maria Fernandes. “Ela ocorreu em 1904, no momento em que havia epidemia de varíola, mas, principalmente, havia tensão social e insatisfação popular muito fortes”, afirma.

O principal motivo eram reformas urbanas propostas para o Rio de Janeiro. Os principais personagens dessa história, o então presidente da República, Rodrigues Alves (1848-1919), o prefeito do Distrito Federal, engenheiro Francisco Pereira Passos (1836-1913), e o diretor-geral de Saúde Pública (cargo equivalente ao de ministro da Saúde), o médico Oswaldo Cruz (1872-1917).



(foto: Marcelo Lélis/EM/D.A Press)


“Os projetos contemplavam a modernização e o embelezamento da cidade, com avenidas largas, criando-se uma Haussmann tropical”, diz a pesquisadora da Fiocruz, em referência ao francês Georges-Eugène Haussmann (1809-1891), responsável pela reforma urbana de Paris entre 1853 e 1870, modelo seguido por Pereira Passos. Com essa inspiração, os cortiços cariocas, nos quais vivia a população pobre, foram demolidos, afastando esses moradores para longe do Centro da cidade e, portanto, do trabalho. As medidas tinham como base um código de posturas sanitárias, logo apelidado pelo povo de “código de torturas”.


Tensão na capital federal

Vale muito a pena voltar no tempo para entender melhor essa história e compreender como e por que a tensão foi crescendo na então capital federal. “Vamos ver que o problema era bem maior do que a vacina, havia várias questões envolvidas”, observa a pesquisadora.



Conforme pesquisa da Casa de Oswaldo Cruz, em apenas um hospital da então capital da República, chegava a 1,8 mil o número de pessoas internadas com varíola. Mas o povo rejeitava a vacina, que era feita a partir de um líquido de pústulas de vacas doentes. Corria então o boato de que quem se vacinava ganhava feições bovina. Qualquer semelhança com memes que 116 anos depois correm grupos de WhatsApp e se alastram em redes sociais sobre as pesquisas com imunizantes contra a COVID-19 não é mera coincidência.



Vacina obrigatória no Brasil

No Brasil, o uso da vacina contra varíola foi declarado obrigatório para crianças em 1837 e para adultos em 1846. Mas a resolução não era cumprida. Em junho de 1904, Oswaldo Cruz, à frente da Diretoria-Geral de Saúde Pública, motivou o governo a enviar ao Congresso um projeto para reinstaurar a obrigatoriedade da vacina no território nacional.

Apenas quem comprovasse estar vacinado conseguiria contrato de trabalho, matrícula em escola, certidão de casamento, autorização para viagem e outros documentos. Após bate-boca no Congresso, a lei foi aprovada em 31 de outubro e regulamentada em 9 de novembro.

Foi a faísca que faltava para acender o fogo da revolta. O povo não aceitava ter as casas invadidas para tomar injeção contra a varíola e foi às ruas protestar contra o governo do presidente Rodrigues Alves. Houve ação também de forças políticas que queriam depor o presidente, típico representante da oligarquia cafeeira.





Charge de época mostra a revolta com a política do sanitarista Oswaldo Cruz, que ocupava cargo equivalente ao de ministro e liderou movimento pela imunização obrigatória (foto: Reprodução)


Em 5 de novembro, foi criada a Liga Contra a Vacinação Obrigatória. Cinco dias depois, a cidade era um tumulto só: gritos de estudantes, repressão policial, assalto a bondes, teatros fechados. Teve até rebelião militar, com os cadetes da Escola Militar enfrentando tropas governamentais. Em menos de duas semanas, foram registrados 945 prisões, 461 deportados, 110 feridos, 30 mortos.

A vacinação continuava obrigatória, mas a lei era desrespeitada. Mais tarde, em 1908, uma crise sem precedentes na história da capital federal daria razão aos defensores da vacina. Naquele ano, o Rio de Janeiro foi atingido pela mais violenta epidemia de varíola de sua história. O povo em sua maioria, então, correu para ser vacinado.

Em um comparativo entre 1904 e 2020, a pesquisadora Tania Maria Fernandes ressalta que a melhor vacina – então, como agora – é sempre a informação. “Hoje não temos uma revolta, mas um grupo de negacionistas da ciência. No início do século 20, podemos dizer que havia um movimento contrário à obrigatoriedade de ser vacinado. Era grande o número de pessoas sem informação, um quadro bem diferente de hoje”, afirma.





A verdadeira revolução

Para o diretor do Sindicato dos Médicos de Minas Gerais, André Christiano dos Santos, médico da família e comunidade, as vacinas vieram para revolucionar a história da medicina. “Foram uma das grandes conquistas que tivemos no mundo e fizeram a diferença para qualidade e tempo de vida da população de maneira geral”, afirma.
O médico explica que a primeira vacina que se tem notícia foi exatamente a desenvolvida contra a varíola.

“Normalmente, elas são desenvolvidas para doenças graves que causam grande impacto na população e grandes morbidade e mortalidade. A importância maior está no aspecto de proteção individual, mas também tem valor extremo para o coletivo. Quando diminuímos a circulação de vírus e bactérias responsáveis pela produção de doenças, contribuímos para a saúde de todos.”

Infelizmente, acrescenta André Christiano, há no mundo atual movimentos anti-vacina que só atrapalham a saúde coletiva. “Geralmente têm cunho individualistas e não conseguem enxergar o coletivo. Estamos enfrentando uma pandemia e na grande expectativa de desenvolvimento de uma vacina que possa frear essa doença (COVID-19) tão grave que afeta todo o mundo.”

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