Após quase nove meses do registro do primeiro caso de coronavírus no país, o desafio dos hospitais se multiplica. De um lado, algumas instituições privadas registram alta de infectados. Do outro, os recuperados, mas que ficaram com sequelas ou sintomas prolongados, também são foco de atenção. De 17.044 pacientes que ficaram internados nos hospitais municipais em São Paulo por COVID-19, 7.136 foram acompanhados após o período de infecção - 42% do total.
Os dados são da própria Secretaria Municipal da Saúde. O porcentual está próximo da projeção de pesquisa do Hospital das Clínicas sobre pacientes com sequelas ou sintomas prolongados. De 1,5 mil internados no hospital de março a abril, os especialistas projetam índice entre 30% e 40% de pacientes com sequelas.
Esses são alguns dos poucos dados disponíveis sobre o tema. Na Secretaria Estadual da Saúde, a descentralização da rede de assistência e a falta de filtros mais específicos no banco de dados (Datasus) dificultam rastrear os pacientes. Infectologista da Universidade Federal do Rio (UFRJ) e especialista no tema, Rafael Galliez afirma que há poucas pesquisas nacionais sobre o assunto. A maioria está em desenvolvimento.
Nem o Ministério da Saúde fez essa conta ainda. Conforme a pasta, o país registra 5.256.767 curados. "Do ponto de vista clínico, não é correto considerar um paciente recuperado apenas a partir do teste PCR negativo. A recuperação é complexa", diz Rodrigo Stabeli, pesquisador da Fiocruz e professor de Medicina da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar).
No Hospital Delphina Aziz, em Manaus, a ocupação de leitos de UTI no fim de outubro era de 96%. Das 90 vagas, 60% eram ocupadas por pacientes em recuperação das sequelas.
Stabeli acredita que a COVID pode repetir as crises de zika e chikungunya. "A epidemia de zika criou uma geração de microcéfalos, que necessitam de acompanhamento cognitivo e fisioterápico no SUS. A crise causada pelo chikungunya persistente causa artrite reumatóide que atinge pacientes por quase dois anos", diz. "Mesmo com vacina eficaz, provavelmente viveremos períodos sazonais de coronavírus, como ocorre com a influenza", afirma ele.
Maria Daniela Bergamasco, coordenadora do Serviço de Controle de Infecção Hospitalar do Hcor, explica as nomenclaturas. "Sintoma é a queixa ou manifestação do paciente. Sintomas prolongados são os que permanecem mesmo após fase aguda da doença. O termo 'sequelas' é usado quando ele passa por condição clínica que deixa consequências muitas vezes permanentes para a saúde", diz.
Reabilitação
Especialistas do Instituto de Reabilitação Lucy Montoro, que recebe pacientes que tiveram alta em outros hospitais, se deparam com várias faces do problema. A principal é a insuficiência respiratória. Paralelamente, muitos pacientes apresentam problemas de locomoção. Foi o que houve com a pediatra e infectopediatra Daniela Vinhas Bertolini, de 48 anos. Nos 39 dias em que ficou no hospital (11 na UTI), ela não teve grande comprometimento respiratório. A principal complicação foi a síndrome de Guillain-Barré, doença na qual os anticorpos atacam os vírus, mas também células nervosas. "Me sentia como se tivesse caído em um tanque de areia movediça."
Por causa da complicação, teve de emendar uma internação na outra. Após ter alta da COVID em 7 de outubro, iniciou o processo de reabilitação dez dias depois no instituto. Ficou só dez dias com as filhas, Giovanna, de 17 anos, e Luana, de 14, e o marido, João, de 55 anos. Hoje, continua internada na quarta semana de reabilitação. Os médicos apontam evolução de 60%. "Sentia muita fraqueza nos braços e nas pernas. Não tinha estabilidade nem equilíbrio para ficar em pé. Ainda tenho longo caminho de fortalecimento, mas estou bem melhor."
Quanto mais cedo os pacientes iniciam a reabilitação, melhores serão a resposta e a recuperação funcional, explica o fisiatra Fernando de Quadros Ribeiro. "O programa de reabilitação precoce tem feito toda a diferença. Recebemos pacientes quatro ou seis meses após a alta da COVID que não receberam tratamento reabilitacional e que continuam com falta de ar, fraqueza e dor", diz o especialista do Instituto Lucy Montoro. "Essas queixas podem se tornar crônicas e impedir que o paciente retome plenamente o estilo de vida que possuía."
Para ele, algumas incapacidades podem ser comparadas ao quadro de outras doenças. "A falta de ar sentida por alguns pode ser comparada às doenças crônicas de pulmão. A falta de iniciativa se refere a casos severos de depressão. Alguns podem apresentar complicações mais dramáticas, como o AVC."
Dos dez leitos do instituto, dois estavam ocupados por pacientes que se recuperam da COVID no dia da visita do Estadão, na última terça-feira; outros três tiveram alta semana passada. Desde maio, 40 pacientes já se beneficiaram do programa.
Um dos pacientes que tiveram alta foi o ex-coletor de lixo Antonio Pissirili, de 73 anos. Após 23 dias internado para se curar da COVID e mais 35 para reabilitação, ele se diz 80% recuperado. As caminhadas, porém, ficaram mais curtas. "Se ando 500 metros, tenho de parar." Ele ainda sente formigamento nas pernas e toma medicamento com frequência para dores nas costas. Ele teve a mesma síndrome da paciente Daniela Vinhas. Também há cicatrizes emocionais. A mulher, Natalia, diarista de 57 anos, conta que o marido está mais nervoso e agitado do que antes da doença e precisa tomar antidepressivo. O marido, diz ela, tem medo de se infectar novamente.