O dia da Consciência Negra de 2020 ficará ainda mais marcado em 2020 por causa da morte de João Alberto Silveira Freitas, ocorrida na véspera, mas que reverberou durante todo o dia 20 de novembro. O homem negro foi espancado e asfixiado até a morte pelo policial militar Giovane Gaspar da Silva e pelo segurança Magno Braz Borges – ambos brancos – no estacionamento de uma unidade do supermercado Carrefour de Porto Alegre.
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Apesar do vice-presidente Hamilton Mourão ter declarado nessa sexta-feira, que “no Brasil não existe racismo”, os números mostram o contrário. De acordo com o supracitado Atlas, 120 negros são assassinados por dia no Brasil.
O estudo Desigualdades Sociais por Cor ou Raça no Brasil, do IBGE, mostra que no mercado de trabalho, 68,6% dos cargos de gerência são ocupados por brancos, contra 29,9% preenchidos por pretos e pardos. Entre as pessoas que vivem abaixo da linha da pobreza (com menos de 5,50 dólares, ou R$29,59 por dia), 15,4% são brancos e 32,9% são negros. A taxa de analfabetismo entre brancos é de 3,9%, enquanto a de negros é de 9,1%. Entre os deputados federais eleitos em 2018, 75,6% se autodeclaram brancos e 24% se consideram pretos e pardos.
A morte de João Alberto causou uma onda de manifestações por todo o Brasil e declarações de solidariedade de diversas autoridades. Ministros do STF, os presidentes da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, o governador do Rio Grande do Sul, o prefeito de Porto Alegre, entre outros, lamentaram o caso e ressaltaram a necessidade de se combater o racismo estrutural no Brasil.
Na contramão, a delegada Roberta Bertoldo, responsável pelo caso, disse em entrevista à Folha de S. Paulo, que ainda não era possível definir se o crime teve motivação racista. O posicionamento da policial foi citado por Thiago Amparo durante a entrevista.
“É interessante, quando aqueles que deveriam investigar têm um juízo de valor tão contundente, antes mesmo da investigação ser iniciada. Isso é sintomático de um sistema policial e de Justiça que não vê racismo em nada mesmo quando ele está bem à sua frente”, afirmou.
Na entrevista, além das possíveis repercussões jurídicas do homicídio ocorrido no Carrefour, Amparo apresentou suas impressões e perspectivas pessoais sobre o caso. Como homem negro e, portanto pertencente ao grupo mais vulnerável à violência, conforme demonstram as estatísticas, o advogado se mostra, em certa medida, esperançoso de uma melhora no quadro nacional.
“Se a classe política parar de emitir notas de repúdio e efetivamente tomar medidas concretas, é possível reverter esse genocídio negro. E é possível a gente começar hoje fazendo isso”, declara.
Graduado em Direito pela PUC-SP, o advogado Thiago Amparo é professor da Fundação Getúlio Vargas, mestre em direitos humanos pela Central European University (Budapeste, Hungria) e doutor pela mesma universidade. Foi pesquisador visitante na Universidade de Columbia (Nova Iorque, Estados Unidos). É especialista em direito constitucional, políticas públicas e empresariais de diversidade e antidiscriminação e participa da Aliança Jurídica pela Equidade Racial.
Veja abaixo a íntegra da entrevista com Thiago Amparo
Quais as possíveis repercussões jurídicas deste caso? Para a empresa, para as pessoas filmadas agredindo e asfixiando João Alberto, para quem estava próximo e não fez nada.
Há diferentes possibilidades jurídicas neste caso. Para os autores (das agressões), a investigação deveria se dar, na minha opinião, sobre um crime de homicídio e um crime de racismo. A lei de combate ao racismo (Lei nº 7.716/1989) pune quem discrimina ou pratica preconceito de cor e raça. Se ficar provado que há um ódio racial neste caso – e eu acho que é difícil não ficar provado, considerando que não se vislumbra jovens brancos espancados até a morte em supermercados. Então, o componente racial é algo importante ali e deveria ser considerado. É um concurso de crimes quando na mesma conduta se pratica dois crimes. No caso, crimes de homicídio e de racismo.
Além disso, as pessoas que estavam ali e não fizeram nada, podem ser enquadradas e investigadas por omissão de socorro, que também é crime. Havia uma pessoa sendo morta e elas não fizeram nada para impedir que aquilo acontecesse.
Com a empresa, há certa dificuldade de responsabilização, por serem terceirizados. Por outro lado, é possível e se argumente sobre a responsabilidade da empresa (Carrefour) em fiscalizar as ações desses terceirizados.
É possível que a empresa seja responsabilizada coletivamente, por meio de uma ação civil pública, e tenha que pagar indenização por dano coletivo. E que também seja condenada a rever suas práticas estruturais internas. Por exemplo, qual o protocolo na empresa a respeito da atuação de seus seguranças? Qual treinamento eles têm? Leva em consideração a questão racial ou não?
Além da responsabilização penal, há a possibilidade de responsabilização civil daqueles que cometeram homicídio, que seriam também condenados a pagar uma indenização vitalícia para a família da vítima ou até a duração provável da vida daquela vítima.
A delegada que conduz o caso já se manifestou para imprensa afirmando que não viu racismo no homicídio. Como você avalia isso?
É interessante que a delegada teve senso para chegar a uma conclusão que só deveria chegar no fim do inquérito. Deveriam, primeiramente ser investigadas as circunstâncias do que aconteceu, se houve ódio racial ou não, se por meio daquela ação houve a perpetuação do crime de racismo, previsto na Lei nº 7.716. É interessante quando aqueles que deveriam investigar, têm um juízo de valor tão contundente, antes mesmo da investigação ser iniciada. Isso é sintomático de um sistema policial e de Justiça que não vê racismo em nada. Mesmo quando ele está bem à sua frente. A priori, estamos falando do espancamento de uma pessoa negra sem nenhum motivo. Não que houvesse algum motivo possível para esse tipo de brutalidade. Mas não há nada que pudesse dar alguma razoabilidade, senão simplesmente a perpetuação do racismo. Deve-se, pelo menos, investigar se além do crime de homicídio houve o crime de racismo. E depois de investigado, a delegada pode emitir o seu juízo valorativo. A princípio, com tanta contundência, é estranho para quem nem começou a investigação.
O fato de um dos autores ser policial agrava sua conduta de alguma forma?
Sendo policial, ele é treinado para usar técnicas de imobilização que não sejam de violência letal. O policial tem essa expertise. Se ele a emprega para o espancamento deliberado de uma pessoa, significa que isso pode ser considerado agravante, pela motivação. Por exemplo, motivo torpe, pelo ódio que ele expressou contra aquela pessoa. Como policial, ele deveria usar a técnica para não permitir que sua força causasse o óbito, como aconteceu. Deve ser investigado se ele agiu com ódio racial. E isso tem que ser valorado posteriormente pelo juiz.
O ordenamento jurídico brasileiro, apesar de extenso, parece não ser suficiente para inibir crimes como este. O problema está realmente na legislação ou em como ela é aplicada?
É possível se aprimorar a legislação tanto no que diz respeito à responsabilidade das empresas por seus terceirizados em casos como esse do supermercado. E não é de hoje. Nos últimos dois anos, tivemos casos de pessoas sendo espancadas no Extra, depois uma adolescente de 17 anos em outro supermercado em São Paulo. Em segundo lugar, seria importante também que houvesse um tipo penal específico para esse tipo de morte, que provavelmente tem uma motivação por ódio racial. É o que existe por exemplo com relação ao feminicídio, quando se mata por causa da condição de mulher da vítima. Também deveria se punir mais gravemente quando há ódio contra a identidade da vítima. Essas mudanças poderiam ser bem-vindas para ajudar a aperfeiçoar o sistema jurídico.
Porém, já temos, no nosso ordenamento jurídico, condições para responsabilizar todos os envolvidos. Quem perpetrou essa brutalidade, quem assistiu e a empresa. É necessário que o sistema policial e o judiciário levem isso em consideração e não se eximam da sua responsabilidade, para que haja justiça para o João Alberto, que faleceu.
O vice-presidente Hamilton Mourão disse, no dia da Consciência Negra, que ‘não existe racismo no Brasil’ e que isso é uma coisa que ‘tentam importar’ para o nosso país. Como você avalia isso do ponto de vista jurídico e também simbólico?
O vice-presidente Mourão, com essa declaração, mostra efetivamente que não vive na realidade brasileira. Talvez ele esteja em um delírio de democracia racial e não existe no país. Qualquer índice que olharmos, de violência policial, de número de assassinatos, renda, acesso à saúde, educação, em tudo que olharmos, veremos essa perpetuação do racismo hoje e todos os dias no país. Não é uma ideia ‘importada’, especialmente para um país que teve 300 anos de escravidão. Muito mais do que nos Estados Unidos. É um país onde a polícia mata muito mais pessoas negras do que nos Estados Unidos. Quando ele diz que algo é importado, como se viesse de outro lugar, ele não leva em consideração a realidade brasileira. A frase do Mourão ignora a realidade concreta do racismo que se perpetua todos os dias no Brasil. Também ignora a história brasileira de escravidão muito mais profunda e abrangente do que a dos países onde ele acredita que existe racismo e com os quais ele compara o Brasil.
Você vê perspectiva de melhora dessas estatísticas negativas de morte de negros? Desse verdadeiro genocídio?
Episódios como do João Alberto trazem cansaço. Porque são histórias que se repetem todos os dias. Mas acredito que esse cansaço gera indignação e, em última instância, tem que levar à ação, como tem levado. Vimos movimentos nas ruas depois de vários episódios de violência racial no Brasil. É necessário que a gente construa juntos um país onde esse genocídio não aconteça de fato. Minha perspectiva é de que se escutarmos mais os movimentos de pessoas negras no país, se a classe política parar de emitir notas de repúdio e efetivamente tomar medidas concretas, é possível reverter esse genocídio negro. E é possível a gente começar hoje fazendo isso.