Thalia Ferraz, Anna Paula Porfírio dos Santos e Viviane Vieira do Amaral Arronenzi. Essas mulheres representam a triste realidade de um país que vê o avanço do crime de feminicídio. O assassinato da juíza Viviane Arronenzi, do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJ-RJ), pelo ex-marido, o engenheiro Paulo José Arronenzi, ganhou maior repercussão, mas as outras duas vítimas também foram assassinadas brutalmente no Natal. São mulheres mortas pela condição de gênero. Os casos reacendem o debate sobre o crime no Brasil, ao mostrar que a violência contra elas não se intimida diante de classe ou condição social e nem cor da pele.
Leia Mais
Violência contra mulheres não reduz em segundo ano do Dia de Combate ao FeminicídioFeminicídio: homem mata mulher a facadas em BHEx-marido que matou juíza a facadas no Rio se cala em depoimentoMarido é condenado a 31 anos de prisão pela morte de Tatiane Spitzner Justiça bloqueia R$ 640 mil de ex-marido que matou juíza a facadas, no RioO crime ocorrido numa rua do bairro da Tijuca, na zona Oeste da capital fluminense, foi o que mais chamou a atenção no país. O ex-marido da juíza Viviane Arronenzi a esfaqueou na frente das três filhas do casal – uma de 9 anos e duas gêmeas de 7 –, na quinta-feira, véspera do Natal. A cena foi gravada em vídeo por testemunha, no qual é possível ouvir os gritos das crianças para que o pai parasse de golpeá-la. Laudo divulgado ontem comprovou que ela foi morta com 16 facadas desferidas pelo ex-marido.
Entidades representativas de juízas e juízes, além do próprio presidente do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), Luiz Fux, defenderam e prometeram atuar para “prevenir e erradicar” o feminicídio no país. Durante o primeiro semestre deste ano, os registros de agressões contra as mulheres nas delegacias de todo o país caíram 9,9%, mas houve aumento de 3,8% no volume de chamadas para o 190 sobre casos de violência do- méstica. Foram feitas 147.379 ligações telefônicas, segundo a 14ª edição do Anuário Brasileiro de Segurança Pública. A publicação foi lançada sob o contexto da pandemia da COVID-19.
Os crimes de feminicídio também avançaram de janeiro a junho último, em comparação com o mesmo período do ano passado. O número de vítimas subiu de 636 para 648, elevação de 1,9%. No ano passado, foram registrados 1.326 casos no país. De acordo com dados da Secretaria de Estado de Justiça e Segurança Pública (Sejusp), de janeiro a novembro deste ano, 122 mulheres perderam a vida. A pasta ainda aponta que houve 188 feminicídios tentados em todo o estado. Em 2019, foram 144 crimes consumados e 236 tentados.
A repercussão do assassinato da juíza Viviane Arronenzi, aos 45 anos, foi grande também devido à formação profissional da vítima, tendo em vista que o perfil da mulher que mais morre no país em agressões de companheiro e ex-companheiros é outro. Em 2019, 66,6% das vítimas de feminicídio no Brasil eram negras. Esse percentual revela uma maior vulnerabilidade dessas mulheres, uma vez que elas representavam apenas 52,4% da população feminina nos estados que compõem a base de microdados do Atlas da Violência. A edição 2020 do documento já havia mostrado que, em 2018, a taxa de homicídio de mulheres negras representou quase o dobro se comparada àquela de mulheres não negras.
A pesquisa apontou, ainda, tendências distintas na evolução dos homicídios de mulheres negras e não negras entre 2008 e 2018. De acordo com a publicação, enquanto a taxa de homicídio de mulheres não negras caiu 11,7% no período, a taxa entre as mulheres negras aumentou 12,4%. A maior concentração de feminicídios entre as mulheres negras reforça a situação de extrema vulnerabilidade socioeconômica e a violência a que esse grupo da população está submetido.
Perfil Para Isabel Araújo Rodrigues, advogada especialista em direito das mulheres, a morte da juíza Viviane Arronenzi chama a atenção para uma questão crucial: quando o assunto é feminicídio, não existe perfil de vítima. "Todas as mulheres estão sujeitas à violência doméstica. Estamos falando aqui de pessoas de qualquer classe social, de qualquer raça, de qualquer nível de escolaridade, qualquer cargo, ainda que seja um cargo de poder como uma juíza”, destaca. A advogada lamenta que seja preciso morrer uma mulher de destaque para que o debate sobre essa modalidade de crime desperte a atenção das autoridades.
“Nós temos feminicídio diariamente. Pelo menos duas mulheres morrem todos os dias no Brasil vítimas desse crime. Foi preciso que uma juíza fosse assassinada para que tantas notas de pesar e o próprio Judiciário se manifestasse”, comenta. Se por um lado a violência doméstica alcança qualquer mulher, por outro, o assassino tem um perfil comum. “O agressor é um homem possessivo, machista, agressivo. Um homem que não sabe lidar com suas emoções e com o término de relações. É também um homem que vai desqualificar todas as suas ex-namoradas, ex-mulheres. Ele vai se colocar num papel de pessoa muito interessante, sempre dono da razão”, define Isabel.
A ativista Mirian Chrystus, coordenadora do Movimento feminista Mineiro, acredita que o combate ao feminicídio envolve diversos setores da sociedade, mas precisa começar pela raiz: a educação. “Tem de passar pela educação, educando meninos a respeitar meninas; pela Justiça, que deve preparar melhor seus agentes – advogados, delegados, juízes – no trato da questão da violência contra as mulheres”, destaca Chrystus.
Leia a nota de repúdio do Movimento feminista Mineiro
Um grupo de juízas do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJRJ) publicou ontem, nas redes sociais, manifesto de indignação contra o assassinato a facadas de Viviane Arronenzi. “Nós, mulheres, juízas, feministas, estamos tristes, devastadas e indignadas pela vulnerabilidade que o patriarcado nos impõe”, diz o texto. De acordo com Regina Lúcia Passos, desembargadora do TJRJ, que participa do movimento, a manifestação começa como um desabafo e pede justiça por tantos casos de feminicídio. “O caso de Viviane não pode ficar sem resposta. Foi uma ofensa também às filhas dela, meninas e mulheres. Que ela sirva para que outras mulheres não padeçam do mesmo mal”, disse. (Com informações de Jorge Vasconcellos e Mariana Fernandes/Correio Braziliense)
Onde denunciar
Centrais por telefone
» Ligue 190 se ouvir gritos e sinais de briga
» Ligue 180 para denunciar violência doméstica
» Ligue 100 quando a violência for praticada contra crianças
Locais de atendimento
Acolhimento de vítimas de violência doméstica em Belo Horizonte
» Delegacia Especializada em Atendimento à Mulher, ao Idoso e à Pessoa com Deficiência
Avenida Barbacena, 288
Telefone: (31) 3330-5752
» Centro Risoleta Neves de Atendimento à Mulher
Telefones: (31) 3270-3235/3270-3296
» Defensoria Especializada de Defesa da Mulher vítima de Violência
Telefones: (31) 98475-2616/98464-3797/ 98239-8863
» Centro Especializado de Atendimento à Mulher (Benvida)
Telefone: (31) 98873-2036
» Promotoria da Mulher
Telefone: (31) 3337-6996
Em qualquer cidade
» Nos locais onde não houver nenhum serviço especializado de atendimento à mulher em situação de violência, entre em contato com a delegacia de polícia mais próxima, com o serviço de assistência social do seu município (ou Cras), ou com a Promotoria de Justiça da comarca.
Juízes destacam 'caráter endêmico'
A Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e a Associação dos Juízes Federais do Rio de Janeiro e Espírito Santo (Ajuferjes) assinaram nota conjunta contra o assassinato da juíza Viviane Vieira do Amaral Arronenzi, do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, que foi morta pelo ex-marido na frente das três filhas, na véspera do Natal. O engenheiro Paulo José Arronenzi, de 52 anos, foi preso em flagrante.
As duas entidades afirmam que o caso demonstra que a violência contra a mulher ‘tem caráter endêmico’ no Brasil, atingindo principalmente mulheres negras e pobres, mas também todas as mulheres ‘unicamente pela questão do gênero’. Na sexta,-feira, o presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Luiz Fux, divulgou comunicado afirmando ser ‘urgente’ o debate sobre a violência doméstica no país e que a corte e o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) ‘se comprometem com o desenvolvimento de ações que identifiquem a melhor forma de prevenir e de erradicar’ esse tipo de crime. Manifestação semelhante foi divulgada pela Associação dos Magistrados Brasileiros, que classificou o feminicídio como ‘uma chaga’.
“O país mantém a quinta maior taxa de feminicídio do mundo, 90% dele cometido por companheiros ou ex-companheiros. Cada uma dessas ocorrências traz consigo uma tragédia pessoal e familiar não captada pelas estatísticas, além de perpetuar a banalização da vida e da liberdade das mulheres”, afirmam os juízes federais.
Há três meses, Viviane denunciou Arronenzi por lesão corporal e ameaças. O próprio Tribunal de Justiça do Rio providenciou uma escolta para a magistrada, mas ela abriu mão da proteção. Na nota pública, a Ajufe e a Ajuferjes reafirmaram “a importância da legislação protetiva de mulheres, especialmente da Lei Maria da Penha, e de outras estratégias de prevenção e repressão à violência contra mulheres em suas diversas formas.”
Prática Característica que distingue os feminicídios das demais mortes violentas intencionais é o instrumento empregado para perpetrar o assassinato. Enquanto na totalidade dos casos de mortes violentas intencionais no Brasil, em 2019, cerca de 72,5% dos assassinatos foram cometidos com o emprego de armas de fogo, em casos de feminicídio o tipo de arma mais utilizado é a chamada 'arma branca'.
Por trás dos números, em todos os anos há casos de mulheres brutalmente assassinadas, em geral, por seus companheiros e ex-companheiros. De acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, isso ocorre em 89,9% dos casos.