A crise gerada pela pandemia evidenciou a importância do papel da ciência na sociedade. Médicos, cientistas e pesquisadores trabalharam dia e noite para descobrir as peculiaridades do vírus que mudou a vida do mundo todo. E foi graças à ciência que uma vacina, mesmo que em caráter emergencial, pôde ser utilizada em tempo recorde, ainda no mesmo ano da descoberta da COVID-19.
O Brasil, apesar de estar incluído no restrito grupo de países que mais publicaram estudos sobre a doença, ainda é considerado emergente quando se fala do desenvolvimento científico, segundo profissionais da área. Porém, há espaço para melhorar, e o caminho passa pelo investimento e pela educação.
“Nós temos áreas em que o Brasil tem uma contribuição significativa, como no setor agrícola, no qual temos uma ciência das mais representativas do mundo. Porém, em várias outras áreas em que o espaço para avançar é muito grande”, afirma o diretor científico da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), Luiz Eugênio Mello.
Apesar de não estar na vanguarda, o país teve mobilização muito elogiada no trabalho contra a covid-19. Levantamento feito pela Agência USP de Gestão da Informação Acadêmica apontou o país em 11º lugar no ranking de países que mais têm publicações científicas sobre a doença, à frente de nações como Holanda, Suíça e Japão. Até 17 de outubro, em todo o mundo, houve 168.546 publicações científicas sobre a covid, das quais, 4.029 do Brasil.
“Imunologistas, cardiologistas, epidemiologistas de tidas as áreas passaram a se dedicar ao estudo da doença. Isso mostra que a sociedade só tem a ganhar ao apoiar a ciência”, afirma Luiz Eugênio. “Em dezembro, já havia países onde o uso de vacinas já estava aprovado. A gente tem vacinas sendo produzidas por empresas nos Estados Unidos, na Inglaterra, na Rússia e na China”, celebra o pesquisador.
O Brasil, porém, não tem nenhuma vacina com tecnologia nacional, apesar de ter dois grandes institutos que produzirão os imunizantes no país: a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e o Instituto Butantan. Isso ocorre “porque o investimento em ciência e tecnologia vem sendo deixado de lado”, critica Luiz Eugênio.
O imunologista e pesquisador da Universidade de São Paulo (USP) Gustavo Cabral trabalha diretamente com o desenvolvimento de vacinas e acredita que o maior problema é a falta de estabilidade no investimento científico. “Nos países desenvolvidos, os recursos para pesquisa são estáveis. Não importa a mudança de governo, ou alteração política, o investimento em ciência, tecnologia e inovação é sempre o mesmo. Por isso, a produção é contínua e deixa uma base de estabilidade para dar uma resposta a uma possível pandemia de forma diferente”, explica.
No Brasil, a regra é a instabilidade. “Muitas vezes a gente desenvolve um trabalho e, quando estamos próximos de chegar a conclusões, há corte de verbas, perdemos estudantes, estrutura, e vai tudo por água abaixo. Temos que começar a remar novamente. Isso nos destrói cientificamente”, avalia Cabral.
Projeto
Luiz Eugênio, da Fapesp, acredita que o Projeto de Lei Complementar (PLC) nº 135/2020, que veda a limitação de recursos do Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT), ajudará na manutenção dos investimentos na ciência. O projeto, de autoria do senador Izalci Lucas (PSDB-DF), foi aprovado pelo Senado e pela Câmara dos Deputados e, agora, depende de sanção presidencial. Segundo a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), em 2020, dos R$ 5,4 bilhões arrecadados pelo fundo, R$ 4,8 bilhões, quase 90%, deixaram de ser aplicados na área porque ficaram bloqueados na reserva de contingência pelo governo.
Cabral conta que testemunhou os benefícios da estabilidade dos investimentos em ciência no período que passou no Instituto Jenner, da Universidade de Oxford, exatamente onde surgiu a vacina desenvolvida pela universidade inglesa com o laboratório sueco Astra Zeneca. Ele foi para a Inglaterra em 2014, em um programa de pós-doutorado que também passou pela Universidade de Berna, na Suíça, e só voltou para o Brasil no fim de 2019.
“Em 2020, antes de começar a trabalhar com novas tecnologias para vacinas , imaginei que iria tirar três meses de férias, mas a pandemia chegou e mudou os planos”, conta. Com isso, teve que adaptar o projeto, que tinha como alvo o desenvolvimento de imunizantes para a chikungunya e o zika vírus, e incluir a covid-19.
Quatro perguntas/ Ester Sabino
Pesquisadora que coordenou o primeiro sequenciamento do genoma do novo coronavírus no Brasil, imunologista da Faculdade de Medicina da USP fala sobre as condições de trabalho dos cientistas no Brasil
Mesmo com interferência políticas e ideológicas, a ciência conseguiu se sobrepor?
A ciência é feita por pessoas com visões ideológicas de todos os grupos. O que é importante para se fazer uma ciência é a técnica. Isso é essencial na área de ciência. Seguramente a resposta do Brasil, a um nível federal, não foi uma resposta baseada em ciência. Essa foi a primeira vez que eu vi o Brasil não seguindo nenhuma das regras de tudo o que foi um esforço de anos. Todas as epidemias que já existiram foram muito mais bem pautadas pelo conhecimento científico do que essa.
Concorda que o Brasil e o mundo “avançaram uma década em um ano”?
Com certeza. A rapidez no desenvolvimento das vacinas contra a covid-19 é fruto desse esforço. Isso vai mudar muita coisa, como a nossa capacidade de fazer vacina. A Vacina da Pfizer, por exemplo, é muito interessante, porque é baseada na tecnologia de RNA. É muito mais fácil de produzir, dá uma segurança a outras agências de que a gente também consiga.
Essa nova tecnologia pode nos dar respostas positivas contra outros vírus, outras doenças?
Exatamente. O que vai mudar é que vai ser mais fácil fazer vacina para outros agentes. Ou mesmo se a gente mudar, acontecerem mutações muito importantes, fica mais fácil fazer uma segunda versão da vacina.
É importante, então, incorporar esse tipo de tecnologia? Isso é uma necessidade no Brasil, para além da compra da vacina?
O Brasil precisa pôr recurso em ciência e em educação. Não se formam a cadeia de produção, de desenvolvimento, sem esses fatores. Precisamos nos esforçar para ter essa capacidade instalada aqui: para o diagnóstico, para vacina, para poder responder à epidemia. Não se pode admitir queda de investimento nessa área no Brasil. Temos de combater esses grupos antivacinas, porque só vamos conseguir controlar a epidemia se muita gente tomar a vacina.