Um novo estudo de cientistas da África do Sul, ainda não revisado por pares, dá maior respaldo às evidências crescentes de que mutações compartilhadas pelas variantes do coronavírus detectadas no Brasil e na África do Sul podem não ser neutralizadas por anticorpos produzidos pelo organismo de quem já foi infectado pelo SARS-CoV-2, o vírus que causa a COVID-19.
Isso abre a possibilidade de que pessoas que tiveram doença sejam infectadas novamente se expostas a essas variantes, diz à BBC News Brasil Tulio de Oliveira, responsável pelo estudo e diretor do laboratório Krisp na Escola de Medicina Nelson Mandela, na Universidade KwaZulu-Natal, em Durban, na África do Sul, onde vive desde 1997.
No entanto, mais estudos são necessários para mensurar o impacto dessa 'neutralização reduzida' dos anticorpos em nossa imunidade, ressalva ele.
Segundo Oliveira, testes em laboratório a partir do "vírus vivo" da cepa achada na África do Sul (501Y.V2) contendo mutações como E484K e N501Y — presentes também na variante do Brasil, mas não na do Reino Unido — mostraram "zero ou muito baixa neutralização" do patógeno pelos anticorpos.
Oliveira chefiou a equipe que descobriu a nova variante do coronavírus na África do Sul e compartilhou os dados com a Organização Mundial da Saúde (OMS), o que, por sua vez, permitiu ao Reino Unido detectar a outra variante em seu território.
Acredita-se que todas essas variantes sejam mais transmissíveis do que a original, mas não se sabe, por enquanto, se mais letais. De todo modo, tende a haver mais mortes porque há muito mais casos.
Oliveira acrescenta que suas mais recentes descobertas também levantam "uma grande questão" sobre a eficácia das vacinas.
"Se os resultados do laboratório mostram que essa variante é menos neutralizada pelos anticorpos, isso terá algum efeito na eficácia das vacinas?", questiona Oliveira.
"No momento, presumimos que a eficácia das vacinas não será comprometida. E se for, será pouco (comprometida). Porque as vacinas desencadeiam uma resposta imunológica alta, produzindo muitos anticorpos, por exemplo. Mas ainda é uma questão a ser respondida", acrescenta.
Ele reforça que esses primeiros resultados não podem servir de "desculpa" para interromper os programas de vacinação em todo o mundo.
"Esse vírus nos mostrou que se deixarmos ele circular livremente por muito tempo, se adaptará melhor à transmissão e, potencialmente, escapar de ser neutralizado pelo sistema imunológico".
"Temos que aumentar com urgência as taxas de vacinação e a resposta da saúde pública para que possamos controlar as taxas de infecção o mais rápido possível e reduzir as taxas de mortalidade por essas variantes altamente infecciosas", acrescenta.
'Vírus vivo'
Nos últimos dias, vários estudos indicaram que mutações "escapariam" da ação de anticorpos neutralizantes produzidos pelo corpo contra o SARS-CoV-2.
No entanto, Oliveira e sua equipe foram além e usaram o "vírus vivo" pela primeira vez em testes de laboratório em oposição ao chamado pseudovírus — uma "técnica mais avançada", explica Oliveira, usando todas as mutações incluídas no vírus, e, então, fizeram comparações usando a variante anterior da COVID-19.
"Os resultados mostram que mais de 50% do plasma convalescente (com anticorpos) exposto ao vírus não obteve neutralização. E os outros 50% obtiveram neutralização de baixo nível. Quase metade dos indivíduos com quase nenhuma neutralização parecia nunca ter visto o vírus antes", explica Oliveira.
"O melhor modelo para testar isso é com o vírus vivo, você pega o vírus inteiro, você infecta as células e faz crescer no laboratório, é uma técnica mais avançada e depois você o re-expõe ao plasma convalescente, então você considera o taxa de crescimento do vírus e como ele é neutralizado".
"Concluímos que houve uma neutralização do vírus muito menor, tão menor que, em tese, são necessários cerca de 10 a 15 vezes mais anticorpos para neutralizar o mesmo vírus em comparação com a variante anterior", acrescenta Oliveira.
Segundo ele, "não são boas notícias. Esperávamos que aqueles que já tiveram a COVID-19 não fossem infectados novamente. Isso abre as portas para o vírus com essas mutações reinfectar as pessoas. É uma das principais questões a serem respondidas nas próximas semanas".
Oliveira assinala que mais estudos são necessários para determinar o impacto disso em nossa imunidade, pois nossa resposta imunológica não depende apenas dos anticorpos, mas também das chamadas células T, que atuam em conjunto com eles.
Jesse Bloom, professor-associado de Ciências do Genoma e Microbiologia da Universidade de Washington, nos Estados Unidos, concorda.
"É definitivamente claro que as mutações no RBD (domínio de ligação ao receptor), especialmente a mutação E484K encontrada na linhagem 501Y.V2, reduzem a neutralização do anticorpo. No entanto, atualmente não está claro o quanto essa neutralização reduzida diminui a eficácia protetora da imunidade", diz ele por e-mail à BBC News Brasil. O RBD é uma pequena porção da proteína S do SARS-CoV-2, chave para a ligação do vírus às células humanas e sua infecção.
Cientistas acreditam que essa "neutralização reduzida" pode ser uma das razões pelas quais algumas partes da África do Sul e da cidade de Manaus, no Amazonas, muito atingidas durante o primeiro pico da pandemia, foram de novo amplamente afetadas pela segunda onda — levantando dúvidas sobre a chamada "imunidade de rebanho" que alguns especialistas já haviam dito ter sido alcançada nessas áreas por meio de infecções em massa.
A imunidade de rebanho ocorre quando uma parcela grande o suficiente da população desenvolve uma defesa imunológica contra um patógeno. Nesse cenário, a doença não consegue se espalhar porque a maioria das pessoas é imune e ela passa a ter grande dificuldade para encontrar alguém suscetível. Esse patamar é atingido pela vacinação em massa, e não por infecções em massa.
"Naturalmente, seria de se esperar que essas regiões não fossem muito afetadas pela segunda onda da pandemia, e não é o que vimos", diz Oliveira.
"Ainda temos que investigar se essa nova variante menos neutralizada por anticorpos em laboratório causará maiores taxas de infecção", acrescenta.
"O objetivo da vacina não é parar a transmissão; é fazer com que as pessoas que são infectadas não desenvolvam sintomas muito sérios. O principal objetivo é salvar vidas. E não só a vacina, mas a resposta da saúde pública, de testagem e rastreamento e isolamento e medidas de distanciamento social para tentar diminuir o número de infectados", conclui.
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