Uma paciente com graves sintomas de covid-19, uma mulher de 50 anos, não podia receber visitas do filho adolescente na enfermaria de cuidados paliativos do Hospital das Clínicas (HC), em São Paulo. Havia reuniões virtuais, quando o jovem poderia ver a mãe, mas ele temia esse encontro.
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Histórias como essa foram vivenciadas por um grupo de estudantes de Medicina da USP em uma experiência inédita: eles trabalharam por alguns meses em uma enfermaria de cuidados paliativos para pacientes terminais de covid-19 no Hospital das Clínicas (HC), um dos maiores complexos hospitalares da América Latina.
A ala, que tinha 20 leitos, foi criada em abril do ano passado para receber pessoas com sintomas graves de coronavírus somados a outras doenças, como câncer terminal. Ou seja, na enfermaria havia apenas pacientes cuja morte era considerada iminente e irreversível, embora esse destino anunciado não tenha se concretizado em todos os casos.
"Convivemos com a morte diariamente. Foi uma experiência muito intensa e impactante. Vivemos momentos que vamos nos lembrar para o resto da vida. Também foi um período muito importante para nossa formação como profissionais de saúde", explica Gabrielle.
Inicialmente, os estudantes iriam participar de um projeto de comunicação com os pacientes de covid-19 por meio de robôs. Com um tablet embutido, máquinas caminhavam pelas salas de leitos e permitiam que médicos e familiares conversassem com os internados — se desse certo, essa comunicação economizaria equipamentos de proteção individual utilizados pelos profissionais.
Porém, a rede de wi-fi não funcionou bem em todos os pontos e os robôs ficaram em segundo plano.
Foi então que o grupo de estudantes precisou participar mais ativamente da rotina da enfermaria. "Começamos a aprender práticas de cuidados paliativos. Muitos de nós descobriram esses procedimentos ali mesmo, pois esse assunto não é tratado na faculdade", diz Gabrielle.
O que são cuidados paliativos?
"Costumo resumir os cuidados paliativos da seguinte forma: são os cuidados que damos ao sofrimento das pessoas que convivem com doenças graves ou ameaçadoras da vida", explica Douglas Crispim, presidente da Academia Nacional de Cuidados Paliativos (ANCP) e médico-assistente na enfermaria do HC durante a pandemia.
Na prática, esse ramo da Medicina não busca curar o paciente nem fazer com que ele se recupere da doença, como ocorre em tratamentos médicos tradicionais. A ideia é garantir que a pessoa sofra cada vez menos com os sintomas — com acesso a analgésicos e opiáceos para aliviar a dor, limite a procedimentos invasivos e disponibilização de assistência psicológica.
Ou seja, em caso de morte iminente, o objetivo é tornar esse processo o menos doloroso possível, tanto para o paciente quanto para seus familiares.
"Os cuidados paliativos avaliam o ser humano como um indivíduo e não como uma doença ou um conjunto de órgãos", diz Ricardo Tavares, professor de Medicina da USP e responsável pelo Núcleo de Cuidados Paliativos do HC, que existe desde 2010, mas que teve enfermaria própria apenas com o início da pandemia.
"Esse ser humano tem particularidades. O que fazemos é avaliar a melhor forma de tratar esses sintomas e diminuir o sofrimento da pessoa, pois muitas vezes a continuidade do tratamento médico intensifica esse sofrimento, mesmo em casos em que o processo de morte é irreversível."
Não significa que todos os encaminhados para cuidados paliativos vão morrer. Segundo o hospital, cerca de 25% dos 200 pacientes que passaram pela ala entre abril e setembro receberam alta — um índice ligeiramente menor que o da Unidade de Terapia Intensiva (UTI).
A enfermaria recebeu principalmente pessoas que acumularam sintomas graves de covid-19, como extrema dificuldade para respirar, e problemas relacionados a outras doenças — na maioria das vezes, terminais. Elas foram selecionadas em outras áreas do hospital e encaminhadas aos cuidados paliativos depois de conversas entre os médicos e as famílias.
Recentemente, um estudo publicado no Journal of Palliative Medicine apontou que 22% das pessoas que morreram de covid-19 no Reino Unido já enfrentavam outra doença grave — ou seja, é possível que procedimentos médicos tradicionais não oferecessem chance de recuperação ou prolongamento de sua vida.
"Esses dados mostram que boa parte dos pacientes que faleceram de covid-19 viveram seus últimos momentos em meio a um grande sofrimento desnecessário", opina Crispim.
Últimos encontros
Na enfermaria do HC, uma das tarefas dos estudantes era acompanhar visitas virtuais do paciente com as famílias do lado de fora. Para evitar novas infecções, as visitas presenciais foram proibidas. Por isso, em muitos casos, os alunos assistiram aos últimos encontros entre familiares e pacientes que morreriam logo depois.
A estudante Gabrielle Cordeiro Trofa diz que esses momentos marcaram sua experiência. "Um dos casos era de um senhor idoso, já inconsciente. Todos os dias, a gente levava o celular pra perto e a esposa dele cantava uma música religiosa para ele. Foi um processo muito bonito, apesar da piora progressiva dele. Não eram momentos de despedida, mas de amor, de agradecimento", conta.
O estudante João Vitor Sampaio Rocha, 24, do 6º ano de Medicina, conta a história de uma das pacientes graves que acompanhou:
"Todos os dias, a filha dela mandava áudios e músicas, e a gente colocava no ouvido dela. Até que um dia, a filha disse que gostaria de fazer um vídeo de despedida. Parece que ela sentiu que era o último dia da mãe, a última oportunidade de se despedir. Ela falou durante 40 minutos. Mas estava em paz com essa despedida, só queria agradecer tudo o que a mãe tinha feito, dizer o quanto a mãe era importante. Foi um momento muito marcante pra mim. É possível fazer do processo de morte algo menos traumático, com menos sofrimento e até bonito", diz o estudante.
Já Bianca Partezani Megnis, 25, do 5º ano, relata um caso ainda mais triste. "Tentamos fazer uma visita a um paciente, mas ele estava se alimentando quando a família ligou. Depois, não conseguimos contatar os parentes por telefone. Acabou que ele ficou por último naquele dia. Quando finalmente conseguimos completar a ligação com a família, ele já havia morrido. Não acreditamos. Saímos muito abalados da sala", diz.
Sofrimento dos médicos
A comunicação entre equipe médica, pacientes e familiares é um dos pilares dos cuidados paliativos. A ideia é que essa interação seja mais próxima e empática, um pouco diferente da tradicional relação fria entre as partes.
O médico Douglas Crispim conta que, no início da pandemia, muitos parentes reclamaram que ficavam dias sem ter notícias de seus familiares internados no HC. "Nós criamos uma meta de comunicação diária. Todos os dias nós tínhamos de informar a família sobre o estado de saúde do paciente, explicar os procedimentos que estavam sendo feitos e dar notícias ruins da maneira menos dolorosa possível", explica.
Para ele, essa tradicional "frieza médica" pode ser um indício de que os próprios profissionais de saúde criam uma barreira para se proteger do sofrimento ao lidar com a morte dos outros. "É difícil presenciar o sofrimento das pessoas. Então, de certa forma, nós criamos uma barreira com o paciente e com a família como uma forma de proteção", diz.
Crispim conta que, para ele, trabalhar em uma enfermaria de cuidados paliativos foi uma "chuva de emoções".
"Eu já tinha dez anos de experiência como paliativista, mas atuar com a covid foi a experiência mais desafiadora que já enfrentei. Nunca lidei com uma quantidade tão grande de óbitos. Havia uma rotatividade enorme de pacientes, todos os dias. Meus colegas sofreram muito também, choravam, ficavam desanimados. E isso mexeu muito comigo. Mas a gente se apoiava muito, levantava a cabeça e recomeçava o trabalho", relata o médico.
A estudante Alice de Paula Baer, 23, do 5º ano de Medicina, conta que ficou nervosa ao aceitar o trabalho voluntário na enfermaria. "Fiquei com medo de como essa experiência diária com a morte poderia me afetar. Mas, com o tempo, a gente percebeu que o trabalho da equipe era muito bem feito, o que passou muita segurança para nós", explica.
Seu colega João Vitor Sampaio Rocha relata que a rotatividade na ala o surpreendeu. "Um dia fui embora do hospital e, quando voltei dois dias depois, metade dos pacientes tinham morrido. Era bem assustador nesse sentido, mas consegui me proteger para que não me afetasse quando eu voltava para casa".
Já Bianca Partezani Megnis concorda que, apesar dos momentos difíceis, a experiência contribuiu para sua formação. "Fiquei com medo inicialmente. Mas, para mim, passar por cuidados paliativos foi muito construtivo. Você aprende que a medicina também pode ser mais humana, com mais empatia no trato e na comunicação com o paciente e com a família", diz.
Para o médico Ricardo Tavares, coordenador da enfermaria do HC, os profissionais de saúde, tanto médicos como enfermeiros, também precisam de apoio ao trabalhar tão próximos da morte.
"A gente sofre também, e é impossível não sofrer. Sempre digo aos alunos que temos que ser muito fortes para enfrentar esses momentos. Precisamos ter um compromisso com nós mesmos, um compromisso de ser feliz e de ser pleno na vida, aproveitar os momentos bons que vivemos. Para cuidar dos outros, nós precisamos estar inteiros", diz.
'Papel do médico'
Com o fim do período de voluntariado, o grupo de estudantes da USP decidiu divulgar os cuidados paliativos entre colegas de faculdade. O objetivo, agora, é tentar incluir a disciplina na grade curricular, embora esse seja um processo demorado. Atualmente, os procedimentos paliativos não fazem parte do currículo da graduação na universidade e só são abordados em aulas eventuais a depender do professor.
Os alunos criaram um grupo de estudos para debater a questão entre eles e outros colegas.
"Os profissionais de saúde precisam saber quando podem usar os cuidados paliativos, como se comunicar com os pacientes, como dar uma notícia ruim para a família. Saber reconhecer quando o processo de morte é inevitável e que prolongar o tratamento só vai gerar mais sofrimento. O papel do médico é evitar justamente evitar o sofrimento", diz a estudante Gabrielle Cordeiro Trofa.
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