Nas últimas semanas, conforme noticiado em diversos veículos de mídia, um consórcio de empresas no Brasil está avaliando a possibilidade de comprar vacinas para a COVID-19 de forma privada, doar uma parcela das doses adquiridas ao sistema público de saúde, e utilizar o restante para vacinar os funcionários da empresa, assim como eventualmente seus familiares e clientes.
O Comitê Executivo do Hospital Sírio-Libanês demandou ao Comitê de Bioética do Hospital (CoBi HSL) um parecer sobre a ética desta iniciativa, produzido após deliberação em reuniões extraordinárias entre os dias 27 e 29 deste mês.
A grande questão que se coloca é: é ético realizar a compra e distribuição privada de vacinas contra o coronavírus diante de situação de escassez de imunizantes?
No documento, a equipe destacou pontos que considera relevantes na análise da questão: a escassez global e absoluta de insumos para produção de doses suficientes de vacina para serem disponibilizadas para toda a população; e, nessa situação de escassez, oferecer de forma privada doses de vacinas para funcionários de empresas levaria ao acesso prioritário à vacina para aqueles que trabalham em uma determinada empresa, têm privilégios e/ou melhores condições econômicas, enquanto aqueles que têm maiores riscos ou maior vulnerabilidade continuariam aguardando uma dose sem saber quando ou se esta dose irá chegar.
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Doria diz que insumos para produção de 8,6mi de vacinas estão em liberaçãoSambista Nelson Sargento é vacinado no Rio: 'Pensei muito nesse momento' Número de vacinados contra COVID-19 no Brasil passa de 2 milhõesConforme o parecer, o benefício da vacinação é obtido através de estratégia de saúde pública, não como estratégia de saúde individual. Isto significa que é o efeito decorrente da imunidade de rebanho conferida pela vacinação da população o que leva à redução mais impactante da morbi-mortalidade de uma doença.
Mais ainda, quanto maior for o percentual de imunidade da população de maior risco, maior será o benefício da vacinação.
Especificamente durante a pandemia de COVID-19, o maior excesso de mortalidade foi mensurado quando há colapso dos sistemas de saúde, fato já observado não só em diversas regiões do Brasil, mas também em outros lugares do mundo.
O colapso ocorre quando o influxo de pacientes com as formas graves da doença necessita de leitos hospitalares não disponíveis. O maior potencial de impacto da vacina é justamente prevenir o colapso do sistema de saúde, e isto só é obtido se a população de maior risco estiver imunizada.
O documento atenta ainda para o fato de que, em um país com tamanha desigualdade como o Brasil, privilégios excessivos aos que têm maior poder são enraizados aos hábitos e à cultura da sociedade.
"Existem algumas empresas farmacêuticas que se posicionaram contra a venda de doses de vacinas para a inciativa privada, enquanto outras limitam suas vendas por questões nacionalistas. Num mundo globalizado em uma situação de escassez, a criação ou fomento de um mercado de vendas de vacina para a iniciativa privada, durante uma situação de pandemia, altera tanto o preço quanto a disponibilidade de acesso à vacina para governos e iniciativas públicas, criando uma competição entre privado e público no acesso mundial a um recurso escasso e valioso capaz de salvar vidas", está escrito.
A falta de confiança de diversos setores privados no protagonismo do poder público para agir de forma eficaz e oportuna no acesso e distribuição das vacinas durante a pandemia é outro fator levantado no texto.
"Cria, junto a uma sensação de insegurança, um risco generalizado de ações individualistas em detrimento de ações cooperativas que busquem prioritariamente o bem comum."