Jornal Estado de Minas

As travestis e transformistas que frequentavam a cena alternativa de SP em plena ditadura militar

Em meados dos anos 1960, a húngara Madalena Schwartz fazia todos os dias o percurso de sua casa, no edifício Copan, no centro de São Paulo, até a lavanderia que tinha a alguns quarteirões dali, na rua Nestor Pestana, também no centro. Schwartz era uma mulher de 40 anos e mãe de dois filhos que havia acabado de ganhar uma máquina fotográfica.





 

Naquela década, duas coisas extraordinárias aconteceram com ela: Schwartz iniciou uma carreira na fotografia que acabaria por levá-la a se tornar uma das grandes expoentes da fotografia em São Paulo. E também começou — no percurso diário entre sua casa e a lavanderia — a conhecer e a fazer amizade com dezenas de travestis e transformistas que frequentavam a cena noturna da cidade em plena ditadura militar (1964-85).

 

Na década seguinte, com diversos trabalhos fotográficos já realizados, Schwartz começou a fazer ensaios com as personagens da cena alternativa de São Paulo. Começou com nomes como o cantor Ney Matogrosso, as integrantes do grupo Dzi Croquettes e a atriz Elke Maravilha. Mas depois fotografou também travestis e transformistas anônimas e menos conhecidas, que trabalhavam em salões de cabeleireiro no centro de São Paulo e se apresentavam em boates da região.

 

O universo retratado por Schwartz era um grupo de homens e mulheres que faziam frente ao conservadorismo da época, explica Samuel Titan Jr., coordenador executivo do Instituto Moreira Salles (IMS) e um dos curadores da mostra As Metamorfoses, que reúne até junho, no IMS de São Paulo, as imagens das transformistas feitas pela fotógrafa nos anos 1970.





Ney Matogrosso foi fotografado por Schwartz em 1974 (foto: Acervo Instituto Moreira Salles)

"Essas mulheres trans estão muito claramente buscando espaço de visibilidade e legitimação", afirma Titan Jr. "Era período mais duro da ditadura militar, quando não havia nenhuma possibilidade de reconhecimento jurídico para mulheres trans ou abertura para falar do preconceito que sofriam. Mas elas souberam aproveitar, com muita inteligência, qualquer brecha que se abria nesses espaços, na arte e no burlesco."

Legitimação através da arte

O termo "mulher trans" para definir alguém que é do sexo masculino ao nascer e depois se reconhece como sendo do gênero feminino, nem era usado ou conhecido na época, explica o curador da mostra.

 

As personagens retratadas por Schwartz se definiam como transformistas (artistas homens que usavam roupas femininas e andróginas para se apresentar) e travestis (pessoas que se reconheciam como sendo de gênero diferente do designado ao nascer).





 

Havia uma gama ampla de figuras que frequentavam essa cena alternativa, explica Titan Jr.

 

"As figuras mais em evidência eram majoritariamente homens gays que performavam no palco como figuras ambíguas, que encenavam no palco alguma ambiguidade de gênero", diz o curador. Era o caso de Ney Matogrosso, por exemplo, retratado por Schwartz em 1974.


O gato da fotógrafa entrou nesta foto de Danton e uma pessoa não identificada (foto: Acervo Instituto Moreira Salles)

A principal transsexual em evidência no Brasil na época era a cantora Rogéria, mas ela fazia mais parte da cena carioca — tinha um show chamado Les Girls no Rio de Janeiro.

 

A maioria das travestis fotografadas por Schwartz eram anônimas e menos conhecidas, se apresentavam em boates do centro à noite, trabalhavam em salões de beleza ou como prostitutas — um destino para muitas em um cenário em que os empregos eram ainda mais escassos do que hoje em dia.





 

"Elas lutavam com unhas e dentes por visibilidade e legitimação, que na época só era possível na arte. Não havia uma organização política conjunta, elas trilhavam caminhos individuais", diz Titan Jr.


Benê Lacerda, do Dzi Croquettes (foto: Acervo Instituto Moreira Salles)

"Mas havia muitas redes de ajuda, de camaradagem e também de rivalidade", diz ele. "O movimento por direitos LGBT foi se constituindo de forma mais robusta mais tarde, por homens gays, no fim dos anos 1970", diz Titan Jr.

 

Schwartz conseguiu uma grande intimidade com as frequentadoras dessa cena e os retratos eram realizados em um estúdio improvisado em seu apartamento — isso se traduz em um clima de troca e cumplicidade nas fotos. Em uma delas, o gatinho da fotógrafa resolveu aparecer ao lado das artistas.





 

"Uma das questões é porque ela se interessou por esse mundo. Tinha um elemento de contestação nessas travestis e transformistas. Elas adquiriram para a Madalena e para muitas pessoas um caráter simbólico dentro de um período de perseguições. Tudo aquilo virava uma encarnação do conceito de liberdade", diz o curador da mostra no IMS.

 

A exposição no IMS também faz um paralelo com a cena alternativa em países da América Latina, onde os cenários tinham suas peculiaridades.


Os transformistas Aron e Augusto em 1973 (foto: Acervo Instituto Moreira Salles)

"No Peru, as festas de travestis foram eminentemente proibidas depois em 1975 depois que uma das artistas beijou o presidente na bochecha", conta o curador.

 

Na Argentina, a reunião das fotos foi possível graças a arquivos de memórias trans — havia muita perseguição e nenhuma visibilidade, então os retratos que foram salvos muitas vezes eram fotos escondidas, fotos de festas na rua que a família ia jogar fora.





 

A mostra As Metamorfoses está em cartaz no IMS Paulista, em São Paulo, até 13 de junho. Mais informações neste link aqui.


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